O Hotel Escola da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, em Seropédica, receberá nos dias 10 e 11 de dezembro o Festival Sabores da Resistência, evento que promete reunir chefs, pesquisadores, empreendedores e estudantes interessados na culinária africana, afrodiaspórica e quilombola. Com entrada gratuita, a iniciativa propõe imersão completa na tradição gastronômica afro-brasileira através de programação extensa que combina aulas show, rodas de conversa, concursos gastronômicos e atividades culturais que celebram a memória e a técnica culinária ancestral.
A realização conta com parceria técnica da Associação Brasileira de Chefs de Cozinha e Bartenders do Brasil (ABRACHEFS) e curadoria do Circuito Gourmet da Gastronomia Afro. O festival foi idealizado pelo chef Pedro Alex, presidente da ABRACHEFS, embaixador oficial da Gastronomia do Rio de Janeiro e vencedor do prêmio Dolmã nas edições de 2018 e 2022. O evento nasce com propósito de reafirmar a potência da culinária afro-brasileira e sua influência determinante na formação cultural do país.
Gastronomia como articulação de saberes ancestrais
Para o chef Pedro Alex, a cozinha afrodiaspórica e quilombola transcende o simples ato de cozinhar. Segundo sua visão, essa culinária articula saberes ancestrais, práticas de terreiro e processos que alimentam simultaneamente corpo e espírito, conectando gerações e fortalecendo a identidade negra na contemporaneidade. A gastronomia funciona como forma poderosa de compartilhar culturas e saberes, preservando tradições que resistiram séculos de marginalização e apagamento histórico.
O chef destaca que ações práticas como o festival contribuem de forma mais efetiva no combate ao racismo e à discriminação do que discursos puramente teóricos. Ao valorizar profissionais negros da gastronomia, reconhecer a origem africana de pratos incorporados à culinária brasileira e criar espaços de formação e troca de conhecimentos, o evento promove reparação histórica através da cultura alimentar. A escolha de realizar o festival em universidade pública na Baixada Fluminense reforça esse compromisso com a democratização do acesso ao conhecimento gastronômico.
Programação completa do Festival Sabores da Resistência
O primeiro dia do festival, 10 de dezembro, começa às 12h com aula show do chef Pedro Alex preparando feijoada africana, prato que sintetiza a diáspora negra nas Américas. Às 13h, a chef Márcia Baiana apresenta técnica e história do acarajé, iguaria sagrada do candomblé que se tornou patrimônio cultural brasileiro. Às 14h, o chef Cláudio Alam demonstra preparo de pratos da culinária moçambicana, expandindo o repertório dos participantes para além das fronteiras brasileiras.
A programação do dia 11 de dezembro inicia às 9h20 com recepção e café da manhã no Hotel Escola. Entre 10h e 12h acontece roda de conversa dedicada à comida de terreiro, espaço fundamental para discussão sobre as dimensões ritualísticas, simbólicas e comunitárias da alimentação nas religiões de matriz africana. Às 12h, a chef Andréa Lacoca ministra aula show preparando angu com barriga glaceada, exemplo de como ingredientes considerados humildes podem resultar em pratos sofisticados quando tratados com técnica e respeito.
Chefs renomados compartilham conhecimento
Às 13h do segundo dia, o chef Cadu Freitas apresenta versão salgada do munguzá, tradicionalmente preparado como sobremesa nas festas juninas. A releitura demonstra como a cozinha contemporânea pode dialogar com tradições ancestrais sem descaracterizá-las. Fechando a programação de aulas show, às 14h a chef Elaine Feliciano explora texturas do Brasil com cocada cremosa e geleia dourada, mostrando técnicas de confeitaria aplicadas a ingredientes da culinária afro-brasileira como coco e açúcar mascavo.
A participação de chefs reconhecidos nacionalmente garante qualidade técnica elevada nas demonstrações. Entre os convidados destacam-se profissionais que dedicam carreiras inteiras à pesquisa, preservação e inovação da gastronomia afro-brasileira. A chef Ana Elisa Brennand, embaixadora da ABRACHEFS nos Estados Unidos, atuará como jurada nos concursos gastronômicos, trazendo perspectiva internacional sobre a valorização das culinárias de origem africana.
Concursos gastronômicos valorizam diversidade
O festival incluirá concursos gastronômicos em sete categorias destinadas tanto a profissionais experientes quanto a estudantes e entusiastas da gastronomia. Os concursos representam oportunidade para que talentos emergentes demonstrem domínio técnico, criatividade e conhecimento sobre ingredientes, temperos e métodos de preparo característicos da culinária afrodiaspórica. A competição saudável estimula a excelência e promove intercâmbio de técnicas entre participantes de diferentes regiões e formações.
Os critérios de julgamento considerarão não apenas aspectos técnicos como textura, apresentação e equilíbrio de sabores, mas também a capacidade de cada prato contar histórias, preservar tradições e dialogar com a ancestralidade africana. Os vencedores ganharão visibilidade importante para suas carreiras, além de reconhecimento de entidade respeitada como a ABRACHEFS. A premiação funciona como estratégia de fomento ao empreendedorismo negro na gastronomia, setor historicamente marcado por desigualdades raciais.
Rodas de conversa aprofundam dimensões culturais
As rodas de conversa representam espaço essencial do festival para reflexões que ultrapassam a dimensão técnica da culinária. A roda dedicada à comida de terreiro, por exemplo, abordará como os alimentos funcionam nas religiões de matriz africana não apenas como oferendas ritualísticas, mas como elementos que estruturam comunidades, transmitem conhecimentos e reforçam identidades. Pesquisadores, sacerdotes e cozinheiros compartilharão saberes sobre o significado espiritual de ingredientes, combinações e formas de preparo.
O formato de roda, horizontal e participativo, contrasta deliberadamente com modelos tradicionais de transmissão de conhecimento baseados em hierarquias rígidas. Todos os presentes podem contribuir com experiências, questionar, complementar informações e estabelecer conexões entre diferentes tradições afro-brasileiras. Esse formato reflete valores comunitários presentes nas culturas africanas e quilombolas, onde o conhecimento circula através de trocas geracionais e práticas coletivas.
Importância da realização em universidade pública
A escolha da UFRRJ como sede do festival não foi casual. Para Pedro Alex, realizar evento afrogastronômico dentro de universidade pública na Baixada Fluminense possui importância que transcende o aspecto logístico. A região abriga população negra significativa e é espaço onde se reconhece e celebra a diversidade cultural, destacando a influência da cultura africana na identidade local. A universidade possibilita não apenas campos distintos de pesquisa no setor acadêmico, mas também reconhecimento e divulgação da história, cultura e culinária afro-brasileiras.
O professor Otair Fernandes, doutor em Ciências Sociais e docente do Departamento de Educação do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ, enfatiza que o festival se soma aos objetivos institucionais ao apresentar a riqueza e força da culinária afro-brasileira e de matriz africana. O evento alcança dimensão simbólica de grande importância cultural na Baixada Fluminense e no estado do Rio de Janeiro, somando-se ao movimento de luta contra o racismo e de reparação histórica contra desvantagens econômicas, políticas e culturais resultantes das desigualdades raciais.
Conexão com mês da Consciência Negra
A realização do festival em dezembro mantém conexão próxima com novembro, mês da Consciência Negra no Brasil. A data foi estabelecida pela Lei Federal 12.519 de 10 de novembro de 2011, instituindo o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra em homenagem a Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo do período colonial brasileiro. O mês serve como período de reflexões intensificadas sobre racismo e suas consequências, sendo estratégico programar eventos de valorização da cultura negra nesse contexto temporal.
O festival se insere em calendário mais amplo de atividades que reconhecem e celebram contribuições africanas e afro-brasileiras para a formação nacional. A proximidade temporal com o mês da Consciência Negra facilita articulações com outras iniciativas culturais, educacionais e políticas, potencializando impactos e alcance das mensagens de valorização da identidade negra. Para os organizadores, trata-se de transformar momento de conscientização em ação concreta de fortalecimento comunitário e econômico.
Laboratório de Estudos Afro-Brasileiro participa
O Laboratório de Estudos Afro-Brasileiro e Indígenas (LEAFRO/UFRRJ) participa ativamente do festival, levando perspectivas afrocentradas através de suas pesquisas acadêmicas. O laboratório desenvolve estudos que posicionam África e suas diásporas como centros de produção de conhecimento, contrariando narrativas eurocêntricas que historicamente marginalizaram saberes africanos. No contexto do festival, o LEAFRO levanta debates importantes sobre protagonismo negro na cultura, religiosidade e gastronomia.
A participação do laboratório garante fundamentação teórica sólida para discussões que acontecerão nas rodas de conversa e aulas show. Pesquisadores apresentarão dados sobre origens de ingredientes, rotas de alimentos através do Atlântico durante a diáspora forçada, adaptações culinárias em diferentes regiões brasileiras e resistências alimentares como estratégias de preservação identitária. Essa dimensão acadêmica enriquece o festival, elevando-o além de evento meramente gastronômico para espaço de produção e circulação de conhecimento científico.
Circuito Gourmet alcança diferentes regiões
O Festival Sabores da Resistência integra trajetória mais ampla do Circuito Gourmet da Gastronomia Afro, que já realizou edições em outros campi da UFRRJ e diferentes municípios fluminenses. Em novembro de 2023, o circuito aconteceu no campus Nova Iguaçu da universidade, também com entrada gratuita e programação extensa de concursos, aulas e debates. A estratégia de itinerância permite alcançar públicos diversos e mapear especificidades regionais da culinária afro-brasileira.
Cada edição do circuito contempla pesquisa sobre tradições culinárias locais, identificação de mestres cozinheiros comunitários e documentação de receitas em risco de desaparecimento. O acúmulo dessas informações ao longo das edições forma banco de dados valioso sobre patrimônio cultural imaterial brasileiro, contribuindo para políticas públicas de salvaguarda e para formação de novas gerações de profissionais conscientes da importância dessas tradições. O circuito funciona simultaneamente como celebração e como ferramenta de preservação cultural.
Infraestrutura do Hotel Escola favorece realização
O Hotel Escola da UFRRJ oferece infraestrutura ideal para evento da magnitude do Festival Sabores da Resistência. As instalações incluem cozinhas profissionais equipadas, espaços amplos para realização simultânea de diferentes atividades, auditórios para rodas de conversa e áreas de convivência que favorecem trocas informais entre participantes. A capacidade de hospedar convidados facilita participação de chefs de outras regiões do país.
O hotel funciona também como laboratório de ensino para estudantes do curso de Hotelaria da universidade, que ganham oportunidade de vivenciar na prática organização e execução de evento gastronômico de grande porte. Os alunos atuam em diferentes frentes, desde recepção de convidados até apoio logístico nas cozinhas, acumulando experiência profissional valiosa. Essa integração entre evento cultural, pesquisa acadêmica e formação profissional exemplifica o papel que universidades públicas podem desempenhar no desenvolvimento regional.