A Bélgica acordou nesta quarta,feira com um título que nenhuma nação deseja ostentar, mas que parece inevitável para a complexa política de Bruxelas: o recorde mundial de tempo sem um governo oficial em tempos de paz. A marca anterior, que já pertencia ao próprio país e foi estabelecida durante a crise de 2010 e 2011, foi superada hoje. São exatos 542 dias desde as últimas eleições federais sem que uma coalizão majoritária tenha sido formada para comandar o Reino. O que para muitos países seria motivo de colapso social e guerra civil, na capital da União Europeia é tratado com uma mistura de resignação, surrealismo e uma preocupante normalidade administrativa.
Este “vazio sem precedentes”, como descrito por analistas políticos locais, expõe as fraturas profundas de um estado federal que opera quase como dois países distintos sob a mesma coroa. Desde as eleições de junho de 2024, as negociações entre os partidos de língua holandesa (Flandres, ao norte) e de língua francesa (Valônia, ao sul) entraram em um labirinto sem saída. Enquanto o norte guinou fortemente para a direita e para o nacionalismo flamengo, o sul manteve,se fiel às tradições socialistas e de esquerda, criando um quebra,cabeça ideológico onde as peças simplesmente não se encaixam, deixando o governo federal entregue a uma administração interina com poderes limitados.
Fragmentação política paralisa o reino
A raiz deste novo recorde histórico reside na atomização do voto belga. O cenário partidário tornou,se tão fragmentado que a formação de uma “maioria” exige a união de até sete ou oito partidos diferentes, muitas vezes com agendas diametralmente opostas. O “Cordão Sanitário” — a regra não escrita que impede os partidos tradicionais de formarem governo com a extrema,direita do Vlaams Belang, que venceu amplamente em Flandres — torna a aritmética parlamentar um exercício quase impossível. Sem os votos da maior força política do norte, qualquer coalizão precisa ser um “malabarismo” ideológico, unindo liberais, verdes, cristãos,democratas e socialistas que discordam em praticamente tudo, exceto na necessidade de isolar os radicais.
O Rei Filipe, cuja função é primordialmente cerimonial mas se torna crucial nestes momentos de crise, já nomeou e demitiu uma sucessão de “informadores” e “formadores” reais. Esses enviados especiais têm a missão de sondar o terreno e tentar costurar acordos, mas nos últimos 18 meses, todos voltaram ao palácio real de mãos vazias. A cada rodada de negociação fracassada, a desconfiança entre as comunidades linguísticas aumenta. Os flamengos acusam os valões de viverem às custas das transferências financeiras do norte próspero, enquanto os valões acusam o norte de querer desmantelar a seguridade social e a solidariedade federal que mantém o país unido.
Economia sobrevive no piloto automático
Surpreendentemente, para quem observa de fora, a Bélgica não parou. Trens continuam circulando, escolas abrem, o lixo é recolhido e os impostos são cobrados. Isso se deve à peculiar estrutura do federalismo belga, que devolveu a maioria dos poderes do dia a dia — como educação, transporte e meio ambiente — para os governos regionais de Flandres, Valônia e Bruxelas,Capital. Essas entidades regionais têm governos formados e funcionais, o que amortece o impacto da paralisia no nível federal. O governo central, liderado interinamente pelo primeiro,ministro demissionário, opera sob o regime de “assuntos correntes”, o que significa que pode gerir o orçamento existente e lidar com emergências, mas está legalmente impedido de passar novas reformas ou tomar decisões estratégicas de longo prazo.
No entanto, economistas alertam que essa sobrevivência no “piloto automático” tem um prazo de validade que está se esgotando rapidamente. Sem um governo pleno, a Bélgica não consegue aprovar um orçamento plurianual necessário para conter seu déficit crescente, que já preocupa a Comissão Europeia. Reformas vitais no sistema de pensões, na matriz energética e no mercado de trabalho estão congeladas há quase dois anos. O país está, na prática, comendo suas reservas e adiando problemas estruturais que, quando estourarem, exigirão medidas de austeridade muito mais duras do que as necessárias hoje. O recorde de 542 dias não é apenas um número curioso; é um atestado de estagnação econômica em um mundo que exige adaptação rápida.
Cansaço e ironia da população
A reação da população belga a este novo recorde oscila entre a apatia e o humor negro, traços característicos da cultura nacional. Em 2011, houve grandes protestos, como a famosa “Revolução das Batatas Fritas”, onde estudantes saíram às ruas exigindo um governo. Desta vez, o silêncio é notável. Parece haver uma aceitação tácita de que a Bélgica é ingovernável em sua forma atual. Nas redes sociais e nos bares de Bruxelas, a marca de 542 dias é celebrada com ironia, com organizadores planejando festas para “comemorar” a incompetência da classe política. Essa desconexão entre o cidadão e seus representantes federais é perigosa, pois alimenta ainda mais o discurso antipolítica que fortalece os extremos.
O “surrealismo belga”, termo frequentemente usado para descrever a arte de Magritte, aplica,se perfeitamente à política. O país que hospeda as principais instituições da democracia europeia não consegue exercer a sua própria democracia interna. Diplomatas estrangeiros em Bruxelas observam com perplexidade como o país anfitrião consegue presidir reuniões da UE e ditar normas para o continente enquanto, internamente, não possui um Ministro das Relações Exteriores com mandato pleno para negociar tratados. A credibilidade internacional da Bélgica está sendo corroída lentamente, transformando o país em um exemplo do que acontece quando a polarização política atinge seu ponto de ruptura absoluto.
Futuro do federalismo em xeque
Analistas políticos começam a questionar se este recorde de 542 dias não é o prenúncio do fim da Bélgica como a conhecemos. O líder do partido nacionalista flamengo, Bart De Wever, tem defendido abertamente que o nível federal se tornou irrelevante e que o país deve caminhar para um “confederalismo”, onde as regiões seriam soberanas e o governo central existiria apenas para funções protocolares mínimas. Para muitos em Flandres, a incapacidade crônica de formar um governo é a prova definitiva de que as duas democracias da Bélgica — a do norte e a do sul — não podem mais conviver sob o mesmo teto legislativo.
Do lado francófono, o medo é que essa paralisia seja uma estratégia deliberada dos separatistas para provar que a Bélgica “não funciona” e forçar uma separação. O Partido Socialista, força dominante no sul, insiste na unidade e na necessidade de um estado forte para garantir a proteção social, mas encontra cada vez menos interlocutores dispostos a ouvir no norte. O impasse atual vai muito além de uma disputa por cargos ministeriais; é uma disputa existencial sobre a identidade do país. Se não houver uma solução criativa nos próximos meses, novas eleições poderão ser convocadas, mas as pesquisas indicam que o resultado seria ainda mais fragmentado, reiniciando o relógio do recorde sem resolver o problema de fundo.
Pressão real por solução definitiva
O Palácio Real tem emitido sinais de impaciência crescente. O Rei Filipe, que tem agido como o único árbitro neutro neste jogo de xadrez tridimensional, convocou líderes partidários para reuniões de emergência esta semana. Há rumores de que o monarca pode fazer um pronunciamento raro à nação, apelando à responsabilidade histórica dos políticos. A quebra do recorde de 541 dias serve como um gatilho psicológico; a vergonha internacional de ser, novamente, o país sem governo por mais tempo no mundo pode ser o único fator capaz de forçar os egos políticos a cederem.
A solução, se vier, provavelmente será mais um “compromisso à belga”: um acordo complexo, cheio de notas de rodapé e exceções, que não satisfaz ninguém plenamente, mas permite que a máquina continue girando. Até lá, Bruxelas segue como a capital mundial do surrealismo político, onde o tempo passa, os recordes são quebrados e o governo permanece uma abstração teórica. Para o cidadão comum, a vida segue, provando que talvez, apenas talvez, a sociedade seja capaz de funcionar apesar de seus políticos, e não por causa deles.
