O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, classificou nesta quarta-feira (3) o resultado da COP30, realizada recentemente em Belém (PA), como “decepcionante”. A declaração, feita durante a conferência Reuters Next em Nova York, ecoou como um alerta severo para a comunidade internacional, evidenciando que, apesar dos esforços diplomáticos, as medidas adotadas ainda estão muito aquém do necessário para frear o aquecimento global. Guterres expressou sentimentos contraditórios, reconhecendo que, embora o multilateralismo tenha sobrevivido às tensões geopolíticas, a ambição prática do acordo final não reflete a urgência da crise climática que o planeta enfrenta.
Desfecho da cúpula frustrante
A análise crítica de Guterres sobre o evento no Brasil aponta para lacunas significativas no documento final aprovado pelas 195 nações participantes. O termo “decepcionante” não foi usado de forma leviana, mas sim para descrever a ausência de um “mapa do caminho” claro e obrigatório para a eliminação gradual dos combustíveis fósseis, que continua sendo o principal motor das mudanças climáticas. Embora o “Pacote de Belém” tenha sido celebrado pelo governo brasileiro como uma vitória diplomática, para a liderança da ONU, ele falhou em atacar a raiz do problema com a agressividade exigida pela ciência atual.
O Secretário-Geral destacou que a conferência deixou explícitos os impasses em áreas sensíveis da negociação global. O financiamento climático, por exemplo, foi um dos pontos de maior atrito. A meta aprovada, que prevê o direcionamento de US$ 1 trilhão por ano até 2035 para nações em desenvolvimento, foi considerada tímida diante das necessidades reais de adaptação e mitigação desses países. Guterres enfatizou que, sem recursos robustos e imediatos, as nações mais vulneráveis continuarão desprotegidas contra eventos extremos, como secas prolongadas e inundações devastadoras, que já são uma realidade frequente.
Além disso, a frustração da ONU reflete a percepção de que os interesses econômicos de curto prazo ainda se sobrepõem à sobrevivência a longo prazo. A indústria de combustíveis fósseis, mostrou-se “claramente determinada” a garantir que avanços mais radicais não fossem concretizados no texto final. Essa influência pesada nos bastidores das negociações em Belém travou progressos que poderiam ter sido históricos, transformando o que deveria ser um ponto de virada em mais um passo lento e burocrático.
Balanço do evento insatisfatório
Ao aprofundar sua avaliação, Guterres mencionou o contexto político adverso que cercou a COP30. A ausência de uma liderança proativa por parte dos Estados Unidos, que em momentos cruciais fizeram campanha contra certas metas, foi um fator determinante para o enfraquecimento do acordo final. O “balanço do evento insatisfatório” é, portanto, o resultado de uma equação complexa onde a diplomacia climática colidiu frontalmente com interesses nacionais protecionistas e lobbies industriais poderosos. Mesmo com o Brasil tentando exercer um papel de liderança como anfitrião, as forças contrárias ao abandono do petróleo e carvão se mostraram resilientes.
No entanto, é crucial notar que Guterres não descartou totalmente a relevância do encontro. Ele ponderou que, diante de um cenário global fragmentado por guerras e disputas comerciais, o simples fato de um consenso ter sido alcançado prova que o sistema multilateral ainda respira. O evento em Belém serviu para manter as portas do diálogo abertas, evitando um colapso total das negociações climáticas, o que seria catastrófico. Contudo, “manter as portas abertas” já não é suficiente quando a casa está, metaforicamente e literalmente, em chamas.
A crítica da ONU também se estende à falta de clareza sobre como as metas estabelecidas serão monitoradas e cobradas. Acordos sem mecanismos rígidos de verificação tendem a se tornar promessas vazias ao longo dos anos. O temor é que as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), atualizadas por mais de 120 países durante a cúpula, não saiam do papel com a velocidade necessária. O hiato entre o discurso político nos plenários climatizados e a ação concreta no chão de fábrica e nas políticas energéticas nacionais continua sendo o maior inimigo do Acordo de Paris.
Conclusão climática abaixo do esperado
A repercussão da fala de Guterres reforça que a “conclusão climática abaixo do esperado” gera um passivo perigoso para as próximas gerações. A ciência climática estabeleceu que limitar o aquecimento a 1,5°C é vital para evitar pontos de não retorno nos ecossistemas globais. O resultado da COP30, ao postergar decisões difíceis sobre a transição energética, coloca essa meta em risco iminente. O Secretário-Geral alertou que estamos caminhando para um aumento de temperatura que tornará vastas regiões do planeta inabitáveis, e que a janela de oportunidade para evitar esse cenário está se fechando rapidamente.
Os movimentos sociais e organizações ambientais, que tiveram presença histórica e maciça em Belém, compartilham dessa visão crítica. Para muitos ativistas, o texto final foi desconectado das demandas das ruas e das populações indígenas, que são as primeiras a sentir os impactos da devastação ambiental. A ONU, ao ecoar essa insatisfação, se alinha com a sociedade civil na cobrança por responsabilidade. Guterres foi enfático ao dizer que tem “sentimentos contraditórios”, uma forma diplomática de expressar que a paciência institucional com a inação dos grandes poluidores está se esgotando.
Esse cenário impõe uma pressão gigantesca sobre a próxima conferência, a COP31. O que não foi resolvido no Brasil terá que ser enfrentado com urgência redobrada no próximo ano. O legado de Belém, portanto, é ambíguo: por um lado, consolidou a Amazônia como centro do debate político; por outro, expôs a fragilidade do consenso global quando o assunto toca nos lucros da economia fóssil. A “decepção” citada por Guterres deve ser lida como um chamado à ação, não como um sinal de desistência.
Saldo da conferência limitado
Por fim, o “saldo da conferência limitado” deixa lições importantes para a governança global. Ficou evidente que o modelo atual de negociação, que exige consenso unânime de quase 200 países, muitas vezes nivela os resultados por baixo, atendendo ao denominador comum menos ambicioso. Países produtores de petróleo conseguiram, mais uma vez, suavizar a linguagem sobre a transição energética, substituindo termos como “eliminação” por “redução gradual” ou focando apenas em tecnologias de captura de carbono, que ainda não são escaláveis o suficiente.
A liderança brasileira, embora elogiada pela organização e pela recepção em Belém, enfrenta agora o desafio de manter o ímpeto da agenda climática internamente e externamente. O governo Lula, que apostou alto na COP30 como vitrine de seu retorno ao cenário internacional, precisa digerir a crítica da ONU e recalibrar suas estratégias. O sucesso logístico e a beleza da capital paraense não foram suficientes para mascarar a falta de conteúdo prático nas decisões que realmente mudariam o curso das emissões globais de gases de efeito estufa.
Guterres encerrou sua participação no debate pós-COP lembrando que o trabalho não terminou. A luta contra a mudança climática é uma maratona, não um sprint, mas estamos correndo essa maratona com pesos nos tornozelos. A declaração de ontem serve para dissipar qualquer euforia injustificada e colocar os pés dos líderes mundiais de volta na realidade dura dos dados científicos. O tempo para discursos bonitos acabou; a era da implementação rigorosa precisa começar, mesmo que atrasada.
