EUA aprovam US$ 900 bi para guerra: 5% desse valor acabaria com a fome

Enquanto Washington blinda arsenal com valor histórico, ONU luta por recursos escassos, dados mostram que prioridade bélica supera crise humanitária global.

Uma criança sentada sobre a grama seca raspa com a mão os últimos restos de comida de um prato de metal prateado; ela veste um agasalho esportivo nas cores azul-turquesa e rosa e tem cabelos trançados.
Enquanto os EUA aprovam US$ 900 bilhões para defesa, a ONU luta para arrecadar os US$ 40 bilhões necessários para evitar a fome aguda de 42 milhões de pessoas. (Foto: Reprodução)

A Câmara dos Representantes dos Estados Unidos aprovou nesta quarta,feira (10) um orçamento de defesa colossal estipulado em US$ 900 bilhões para o próximo ano fiscal. O montante, um dos maiores já registrados na história militar americana, visa modernizar o arsenal nuclear, expandir a frota naval e reforçar a presença geopolítica diante das tensões com China e Rússia. No entanto, a cifra astronômica reacende um debate ético urgente sobre a alocação de recursos globais. Enquanto o martelo bate em Washington garantindo mísseis e caças de última geração, agências humanitárias das Nações Unidas operam no vermelho, incapazes de frear a crise de insegurança alimentar que atinge mais de 700 milhões de pessoas ao redor do globo.

A votação, que seguiu linhas bipartidárias, reflete a doutrina de “paz através da força” que domina o Capitólio. O projeto de lei, conhecido como National Defense Authorization Act (NDAA), destina verbas bilionárias para tecnologias emergentes, como inteligência artificial aplicada ao combate e defesa hipersônica. Contudo, críticos apontam que esse “seguro de vida” nacional ignora a maior ameaça à estabilidade mundial: a desigualdade extrema. Especialistas em economia global argumentam que a segurança não advém apenas de porta,aviões, mas da estabilidade social de nações emergentes, algo impossível de alcançar enquanto a fome for uma realidade endêmica.

Para colocar em perspectiva, o valor aprovado pelos legisladores americanos supera o PIB de países inteiros, como a Arábia Saudita ou a Suíça. A decisão de injetar quase um trilhão de dólares na indústria da defesa ocorre no mesmo ano em que o Programa Mundial de Alimentos (PMA) da ONU foi forçado a cortar rações para refugiados por falta de financiamento. Essa contradição expõe a fragilidade da diplomacia internacional, onde o discurso de direitos humanos frequentemente colide com a parede de concreto dos interesses do complexo industrial,militar.

Prioridade Bélica em detrimento da vida

A escolha pela Prioridade Bélica fica evidente quando analisamos os dados fornecidos pela própria ONU. Segundo estimativas do diretor do Programa Mundial de Alimentos, seriam necessários cerca de US$ 40 bilhões anuais para evitar a fome aguda e salvar 42 milhões de pessoas que estão à beira da inanição. Esse valor, que parece alto isoladamente, representa apenas 4,4% do orçamento militar aprovado hoje pelos Estados Unidos. Ou seja, com menos de 5% do que será gasto em tanques, drones e munições em um único ano, seria possível retirar dezenas de milhões de seres humanos da sentença de morte pela fome.

Além disso, a Prioridade Bélica se manifesta na velocidade da aprovação. Enquanto pacotes de ajuda humanitária ou climática levam meses ou anos para serem debatidos e frequentemente sofrem cortes, o orçamento de defesa tramita com celeridade e quase sempre recebe aditivos superiores ao solicitado pelo Pentágono. A facilidade com que se encontram recursos para a destruição contrasta violentamente com a burocracia enfrentada para a preservação da vida. O recado geopolítico é claro: a hegemonia militar é inegociável, enquanto a dignidade humana é tratada como uma nota de rodapé orçamentária.

Portanto, a manutenção dessa Prioridade Bélica perpetua um ciclo vicioso. Conflitos armados são, hoje, o principal vetor da fome mundial. Ao investir maciçamente em armamento sem um contra,investimento proporcional em desenvolvimento e diplomacia preventiva, as potências globais alimentam as próprias crises que depois exigirão intervenções militares custosas. É uma lógica de guerra perpétua que drena recursos da sociedade civil para sustentar uma paz armada e frágil.

Abismo Orçamentário entre defesa e desenvolvimento

O Abismo Orçamentário revelado por este projeto de lei é uma ferida aberta na consciência global. Se ampliarmos o cálculo para a erradicação total da fome até 2030 (o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável número 2), estudos citados pelo Instituto Internacional de Pesquisa sobre Políticas Alimentares (IFPRI) e pelo Ceres2030 estimam que seriam necessários cerca de US$ 33 bilhões adicionais por ano. Isso significa que, com o valor de US$ 900 bilhões aprovado para apenas um ano de defesa dos EUA, seria possível financiar a erradicação estrutural da fome no mundo inteiro por quase três décadas consecutivas.

Neste cenário de Abismo Orçamentário, o argumento da “falta de recursos” cai por terra. Dinheiro existe; o que falta é vontade política de redirecionamento. A quantia destinada à modernização do arsenal nuclear americano, prevista no pacote, sozinha já superaria o orçamento total de muitas agências de ajuda humanitária. Estamos falando de um sistema onde o custo de um único bombardeiro estratégico B,21 Raider (estimado em quase US$ 700 milhões) poderia fornecer merenda escolar nutritiva para milhões de crianças na África Subsaariana e no Sul da Ásia por um ano inteiro.

Contudo, defensores do orçamento argumentam que o Abismo Orçamentário é necessário para manter a ordem liberal internacional e proteger as rotas de comércio. No entanto, essa visão ignora que a fome e a miséria são terrenos férteis para o extremismo e a instabilidade política. Financiar a segurança apenas pela via das armas, ignorando o desenvolvimento humano, é como tentar conter uma inundação construindo muros cada vez mais altos, em vez de parar a chuva.

Custo Humanitário da inação

O Custo Humanitário dessa disparidade não é uma abstração matemática; ele tem rosto e nome. Enquanto o Congresso americano celebra a aprovação do NDAA como uma vitória da segurança nacional, em zonas de conflito como o Sudão, Gaza e Iêmen, a fome é usada como arma de guerra. A inação da comunidade internacional em financiar adequadamente a resposta à fome resulta em gerações perdidas, com crianças sofrendo de desnutrição crônica (stunting) que afetará seu desenvolvimento cognitivo e físico para sempre. O preço de não investir US$ 40 bilhões agora será pago em trilhões de dólares no futuro, com crises migratórias, pandemias e colapsos estatais.

Além disso, o Custo Humanitário recai sobre a credibilidade das democracias ocidentais. Ao pregar valores de igualdade e justiça enquanto acumulam poder de fogo desproporcional diante da miséria alheia, os países ricos alimentam o ressentimento no Sul Global. A narrativa de que “não há dinheiro para todos” é desmentida cada vez que um novo porta,aviões é lançado ao mar. A fome não é uma tragédia inevitável da natureza; é uma escolha política de alocação de recursos, reafirmada a cada votação orçamentária desse porte.

Por fim, enfrentar o Custo Humanitário exigiria uma mudança de paradigma que parece distante. Seria necessário entender a segurança alimentar como parte integrante da segurança nacional. Um mundo onde ninguém dorme com fome é um mundo intrinsecamente mais seguro e menos propenso a guerras do que um mundo armado até os dentes. Mas, por enquanto, a lógica do medo vence a lógica da esperança, e o cheque de US$ 900 bilhões assinado hoje é a prova documental dessa derrota moral.

Disparidade Global e o futuro insustentável

A Disparidade Global evidenciada pelo orçamento americano é um sintoma de um sistema internacional quebrado. Não se trata de demonizar a necessidade de defesa de uma nação soberana, mas de questionar a proporcionalidade. Quando o orçamento militar de um único país é maior do que a soma dos orçamentos dos próximos nove países combinados, e ao mesmo tempo as metas da Agenda 2030 da ONU estão atrasadas por falta de financiamento, há um desequilíbrio sistêmico que ameaça o futuro da civilização.

Essa Disparidade Global fomenta uma corrida armamentista reversa: enquanto potências acumulam armas, nações pobres acumulam dívidas e déficits sociais. O redirecionamento de apenas uma fração desses gastos militares — digamos, 10% — para um Fundo Global de Combate à Fome e às Mudanças Climáticas, poderia alterar o curso da história. Tecnologias desenvolvidas para a guerra, como logística avançada e monitoramento por satélite, poderiam ser empregadas para otimizar a agricultura e a distribuição de alimentos, transformando a espada em arado.

No entanto, sem pressão pública e uma nova consciência eleitoral, a Disparidade Global continuará a crescer. O número de US$ 900 bilhões deve servir não apenas como um dado estatístico, mas como um alerta de que nossas prioridades como espécie estão invertidas. Enquanto celebrarmos a capacidade de destruir com cifras trilionárias e lamentarmos a incapacidade de alimentar com trocados, a humanidade continuará marchando, bem armada e de barriga vazia, em direção ao abismo.

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