Haiti: Gangues queimam casas e expulsam centenas

Grupos armados lançam nova ofensiva em Artibonite, queimando casas e forçando fuga em massa. Polícia admite perda de controle e caos se espalha, agravando a crise.

Homem armado com rifle e lenço haitiano lidera multidão em área coberta de lixo.
Um homem armado, possivelmente um líder de gangue, é visto no meio de uma multidão em um mercado a céu aberto cheio de lixo em Porto Príncipe, Haiti, refletindo a crise de segurança no país.

O terror tomou conta da região central do Haiti neste fim de semana, forçando centenas de moradores a abandonar suas vidas para escapar da morte iminente. Gangues fortemente armadas lançaram ataques coordenadas contra diversas comunidades, incendiando residências e instaurando o pânico generalizado. O cenário de guerra, descrito por sobreviventes e autoridades locais, expõe a fragilidade absoluta da segurança pública em um país já devastado por crises sucessivas. A violência explodiu em cidades como Bercy e Pont-Sondé, transformando bairros inteiros em cinzas e deslocando famílias que agora vagam sem destino.

Investidas criminosas na região central

A situação em Artibonite, conhecida como o celeiro do Haiti, deteriorou-se rapidamente nas últimas 48 horas. Relatos confirmados indicam que os criminosos não apenas saquearam propriedades, mas adotaram uma tática de terra arrasada, ateando fogo em casas com os pertences das famílias ainda dentro. A brutalidade das ações sugere uma estratégia deliberada de limpeza territorial, visando consolidar o domínio sobre rotas estratégicas que ligam a capital, Porto Príncipe, ao norte do país. O medo paralisou a economia local e silenciou as ruas, onde apenas o som de disparos e o crepitar das chamas rompem o silêncio.

Autoridades locais e sindicatos de polícia emitiram alertas desesperados, reconhecendo a incapacidade de conter o avanço das facções. A região, que já sofria com a escassez de recursos estatais, vê-se agora praticamente entregue à própria sorte. A falta de veículos blindados, munição e efetivo policial adequado transformou as delegacias em alvos fáceis, obrigando, em alguns casos, os próprios agentes da lei a recuar diante do poder de fogo superior dos grupos criminosos. A população civil, desarmada e vulnerável, tornou-se o principal alvo dessa disputa sangrenta por território e poder.

O impacto psicológico sobre os residentes é devastador. Testemunhas relatam cenas de pais correndo com crianças nos braços em meio à escuridão, buscando refúgio em matagais ou cidades vizinhas como Saint-Marc. A incerteza sobre o futuro imediato e a perda total de patrimônio construído ao longo de gerações criam um ambiente de desespero absoluto. Não há, até o momento, um plano de contingência robusto por parte do governo central para acolher essa nova onda de deslocados internos, que se somam aos milhões já existentes no país.

A comunidade internacional observa com preocupação, mas as ações concretas ainda são lentas diante da urgência do cenário. Enquanto reuniões diplomáticas discutem o envio de novas forças de apoio ou o fortalecimento da missão multinacional já aprovada, a realidade no terreno é de abandono. Para o cidadão comum de Artibonite, a diplomacia parece uma realidade distante, incapaz de impedir que sua casa seja reduzida a escombros na calada da noite. A desconexão entre as promessas políticas e a segurança efetiva nunca foi tão palpável.

Ofensivas armadas em Artibonite

O sindicato da polícia SPNH-17 declarou publicamente que cerca de 50% da região de Artibonite já pode estar sob controle efetivo das gangues. Essa admissão alarmante revela o colapso das instituições de segurança fora da capital. A estratégia dos grupos armados evoluiu de simples atos de banditismo para operações paramilitares organizadas, com uso de drones e armamento pesado. O objetivo claro é isolar a capital do resto do país, estrangulando o fornecimento de alimentos e bens essenciais que passam por essa região vital.

A gangue “Gran Grif”, que opera historicamente na área, é apontada como a principal responsável por essa nova onda de terror. O grupo tem um histórico de massacres e sequestros, mas a escala desta última ofensiva surpreendeu até mesmo observadores experientes do conflito haitiano. Ao atacar múltiplas frentes simultaneamente, eles dispersaram as poucas forças policiais disponíveis, criando um vácuo de segurança que foi rapidamente preenchido pela violência e pela anarquia. A coordenação tática demonstra um nível de sofisticação que desafia a narrativa de “gangues de rua” desorganizadas.

Além da destruição física, há o colapso dos serviços básicos. Hospitais na região operam com capacidade mínima ou fecharam as portas por falta de segurança para funcionários e pacientes. Escolas foram transformadas em abrigos improvisados ou quartéis-generais para os criminosos. O tecido social de cidades inteiras está sendo rasgado, com líderes comunitários sendo assassinados ou forçados ao exílio, deixando a população sem voz e sem liderança local para organizar qualquer tipo de resistência ou pedido de socorro.

A resposta do governo de transição tem sido classificada como insuficiente por analistas e pela própria população. Promessas de reforço policial esbarram na logística precária e na corrupção endêmica que minam as operações antes mesmo de começarem. Enquanto isso, a rota para o norte, essencial para o comércio e a ajuda humanitária, torna-se intransitável para qualquer um que não pague os “pedágios” extorsivos impostos pelos novos donos do território. O estado haitiano, na prática, deixou de existir em vastas porções de seu próprio território geográfico.

Violência de grupos em áreas centrais

O êxodo para a cidade costeira de Saint-Marc criou uma crise humanitária instantânea no município vizinho. Centenas de pessoas chegaram sem comida, água ou roupas, lotando praças públicas e prédios governamentais. A prefeitura local, já sobrecarregada, não possui recursos para alimentar ou abrigar adequadamente esse fluxo repentino de sobreviventes. A tensão social aumenta à medida que os recursos escasseiam, criando um barril de pólvora que pode explodir em novos conflitos civis se não houver intervenção rápida.

Relatos de ativistas de direitos humanos no local descrevem condições desumanas. Crianças dormem ao relento, expostas a doenças e à violência sexual, que frequentemente acompanha esses deslocamentos forçados. A falta de saneamento básico nos locais de aglomeração improvisados eleva o risco de surtos de cólera e outras doenças infecciosas. A dignidade humana está sendo corroída dia após dia, enquanto o mundo parece ter se acostumado com a tragédia haitiana como um ruído de fundo constante no noticiário internacional.

A crítica internacional recai sobre a demora na implementação total da Missão Multinacional de Apoio à Segurança. Meses após a aprovação, o impacto real nas zonas rurais e centrais do Haiti ainda é imperceptível. A concentração de esforços na capital Porto Príncipe, embora necessária, acabou deixando o flanco central do país exposto, permitindo que as gangues migrassem suas operações para onde a resistência é menor. Essa “balonização” do crime — onde apertar em um lado faz ele inflar em outro — era previsível, mas não foi adequadamente contida.

O desespero levou alguns moradores a clamar por justiça com as próprias mãos, um fenômeno perigoso conhecido como “Bwa Kale”. Embora compreensível diante da ausência do Estado, esse movimento de autodefesa frequentemente resulta em mais violência e espirais de vingança que dificultam ainda mais a pacificação a longo prazo. O Haiti encontra-se em uma encruzilhada brutal: ou recebe ajuda massiva e coordenada para restaurar a ordem, ou corre o risco de se fragmentar definitivamente em feudos controlados por senhores da guerra modernos.

Incursões de facções no interior

Os dados mais recentes da ONU indicam que a violência das gangues já deslocou um recorde de 1,4 milhão de pessoas no Haiti até este momento. O ataque deste fim de semana em Artibonite é apenas o capítulo mais recente de uma tragédia que se arrasta e se aprofunda. A fome, consequência direta do bloqueio de estradas e da destruição de áreas agrícolas pelas gangues, ameaça mais da metade da população. O ciclo de violência alimenta a fome, que por sua vez alimenta a instabilidade, criando um mecanismo perpétuo de sofrimento.

A comunidade internacional precisa entender que o que acontece em Artibonite não fica restrito ao Haiti. A instabilidade crônica impulsiona a migração irregular em massa, afetando toda a região do Caribe e as Américas. Ignorar o colapso da região central haitiana é convidar uma crise migratória ainda maior bater às portas dos países vizinhos. A solução exige mais do que notas de repúdio; exige logística, inteligência e, acima de tudo, vontade política real de enfrentar as raízes financeiras e políticas que sustentam essas gangues.

Para o leitor que acompanha de longe, é vital compreender que estas não são “brigas de gangues” isoladas. Trata-se de um assalto coordenado à soberania de uma nação e aos direitos fundamentais de milhões de seres humanos. As casas queimadas em Bercy são o símbolo de um Estado em chamas. Sem uma intervenção rápida e eficaz que vá além da capital, o Haiti corre o risco de se tornar um território permanentemente governado pelo terror, onde a única lei vigente é a do mais forte e a esperança é o bem mais escasso de todos.

Conclui-se, portanto, que a pacificação do Haiti não pode ser um projeto de meio termo. Ou se restabelece a autoridade em todo o território, protegendo os vulneráveis e punindo os agressores, ou se aceita a falência total de um país a poucas horas de voo das maiores economias do hemisfério. A história julgará a inércia do mundo diante das chamas que consomem Artibonite e o futuro de seu povo.

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