A dimensão global das violações à liberdade de crença atingiu níveis alarmantes, conforme revela o mais recente relatório produzido pela Fundação Ajuda à Igreja que Sofre, organização pontifícia conhecida internacionalmente pela sigla ACN. O documento, divulgado em 21 de outubro durante evento simultâneo em diversas capitais mundiais, incluindo Roma e Lisboa, demonstra que quase dois terços da humanidade residem em países onde esse direito fundamental é sistematicamente desrespeitado pelos governos ou por grupos extremistas.
Os números apresentados pela organização católica impressionam pela abrangência do fenômeno. Mais de 5,4 bilhões de pessoas, equivalente a 64,7% da população mundial, vivem em nações onde ocorrem graves violações ao direito de professar livremente sua fé. O estudo examinou a situação em 196 países durante o período compreendido entre janeiro de 2023 e dezembro de 2024, identificando padrões preocupantes de deterioração das garantias religiosas em praticamente todas as regiões do planeta.
Classificação revela gravidade das violações
A metodologia empregada pelos pesquisadores dividiu os países em categorias distintas conforme a severidade das transgressões documentadas. Na classificação mais grave, denominada perseguição, foram incluídas 24 nações onde ocorrem violações sistemáticas que incluem detenções arbitrárias, tortura e repressão violenta às escolhas religiosas dos cidadãos. Entre os países nessa categoria estão China, Índia, Nigéria, Coreia do Norte, Irã e Eritreia, locais onde mais de 4,1 bilhões de pessoas enfrentam restrições severas.
O dado mais perturbador é que em 75% dessas nações, o equivalente a 18 dos 24 países classificados como perseguidores, a situação piorou ao longo dos últimos dois anos. Isso indica que, longe de haver qualquer tendência de melhoria, o cenário global caminha para um agravamento ainda maior das hostilidades contra comunidades religiosas de diferentes denominações. O relatório constata que a liberdade de pensamento, consciência e religião não apenas está sob pressão, mas está desaparecendo progressivamente.
Discriminação afeta mais de um bilhão de pessoas
Na segunda categoria de gravidade, classificada como discriminação, encontram-se 38 Estados onde residem aproximadamente 1,3 bilhão de pessoas, quase um quinto da população mundial. Países como Egito, Etiópia, México, Turquia e Vietnã integram esse grupo, no qual os grupos religiosos enfrentam restrições sistemáticas ao culto, à expressão de sua fé e à igualdade jurídica, embora não estejam sujeitos à repressão violenta característica da categoria anterior.
Nesses locais, a discriminação resulta frequentemente em marginalização social e desigualdade no acesso a serviços públicos, empregos e oportunidades educacionais. Os fiéis de religiões minoritárias enfrentam obstáculos burocráticos para registrar suas organizações, construir templos ou realizar cerimônias públicas, além de sofrerem exclusão sutil mas persistente nas relações sociais e profissionais. A distinção entre discriminação e perseguição, embora importante para fins de classificação, não diminui o sofrimento imposto às comunidades afetadas.
Autoritarismo lidera causas da repressão
O relatório identifica os regimes autoritários como a principal força motriz das violações à liberdade religiosa em escala global. Em países como China, Eritreia, Irã e Nicarágua, os governos reprimem a religião por meio de vigilância generalizada, legislação restritiva e repressão sistemática de crenças consideradas dissidentes ou incompatíveis com a ideologia oficial do Estado. O controle da fé tornou-se uma ferramenta do poder político, com burocratização cada vez mais sofisticada dos mecanismos de repressão religiosa.
O autoritarismo figura como principal impulsionador da perseguição em 19 países e sustenta padrões de discriminação em outros 33. Os regimes utilizam tecnologias de vigilância em massa, censura digital, detenções arbitrárias e legislação especialmente desenhada para suprimir comunidades religiosas independentes que não se submetem ao controle estatal. O fenômeno transcende fronteiras ideológicas e afeta tanto ditaduras comunistas quanto teocracias e regimes nacionalistas de diferentes orientações.
Jihadismo expande violência em escala sem precedentes
O extremismo religioso violento, particularmente o jihadismo, aparece como segunda maior ameaça à liberdade de crença no mundo contemporâneo. O relatório documenta que em 15 países o extremismo constitui um dos principais fatores de perseguição, enquanto em outros dez contribui significativamente para padrões de discriminação. A expansão dos grupos jihadistas ocorre através de redes descentralizadas que dificultam o combate por forças de segurança convencionais.
Do Sahel africano ao Paquistão asiático, organizações extremistas como Boko Haram, Estado Islâmico da África Ocidental e diversas milícias regionais têm como alvo tanto cristãos quanto muçulmanos que não aceitam sua interpretação radical do Islã. Na Nigéria, ataques perpetrados por grupos armados ligados a pastores fulani radicalizados deixaram milhares de mortos e comunidades inteiras desalojadas. No Burkina Faso, Níger e Mali, aldeias foram completamente destruídas por milícias islâmicas que impõem sua visão religiosa pela força das armas.
Guerras agravam violações em múltiplos continentes
A liberdade religiosa tornou-se também uma vítima global da guerra, conforme constata o documento. Os conflitos na Ucrânia, Sudão, Myanmar, Gaza e Nagorno-Karabakh resultaram em deslocações em massa de populações, encerramento forçado de igrejas e ataques deliberados contra comunidades religiosas identificadas com um dos lados beligerantes. A violência bélica cria condições propícias para que grupos oportunistas intensifiquem perseguições preexistentes ou iniciem novas campanhas de hostilidade.
O relatório documenta ainda um aumento acentuado dos crimes de ódio antissemitas e antimuçulmanos após o ataque do grupo Hamas a Israel em 7 de outubro de 2023 e a subsequente guerra em Gaza. Os analistas registraram elevações significativas em toda a Europa, América do Norte e América Latina. Na França, os atos antissemitas aumentaram 1.000% e os crimes de ódio contra muçulmanos subiram 29%. Os incidentes anticristãos também cresceram nos países ocidentais, com aproximadamente mil ocorrências registradas apenas na França durante 2023.
Apenas dois países apresentaram melhoria
Em contraste com o cenário predominantemente negativo, o relatório identificou apenas duas nações que apresentaram avanços em comparação com a edição anterior do estudo. Cazaquistão e Sri Lanka foram os únicos países onde os pesquisadores constataram melhorias nas condições de liberdade religiosa durante o período analisado. A escassez de exemplos positivos reforça a percepção de que o mundo caminha em direção oposta aos compromissos assumidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Além dos 62 países classificados nas categorias de perseguição e discriminação, outros 24 foram colocados sob observação por apresentarem sinais de alerta que ameaçam a liberdade religiosa. Nesses locais, observa-se aumento da intolerância, erosão das proteções legais, crescimento do extremismo religioso ou interferência estatal progressiva na vida das comunidades de fé. Isso significa que 750 milhões de pessoas adicionais correm risco de discriminação religiosa em futuro próximo.
Perseguição digital emerge como nova ameaça
O documento dedica atenção especial às novas formas de perseguição que emergiram na era digital e da inteligência artificial. Em muitos países, o conteúdo religioso é censurado online e indivíduos podem ser presos por publicações em redes sociais que expressem suas crenças ou critiquem políticas governamentais relacionadas à religião. Regimes autoritários e grupos extremistas utilizam ferramentas tecnológicas para rastrear, identificar e perseguir minorias religiosas com eficiência sem precedentes.
As redes sociais são utilizadas como armas para silenciar minorias, difundir discurso de ódio e alimentar polarização entre comunidades de diferentes tradições religiosas. Grupos extremistas exploram plataformas digitais para incitar violência, disseminar propaganda e recrutar novos membros. A perseguição digital representa um desafio particularmente complexo porque transcende fronteiras nacionais e opera em jurisdições onde a regulação é frágil ou inexistente.
Cristãos são grupo mais afetado globalmente
Segundo estimativas do relatório, aproximadamente 413 milhões de cristãos vivem em países onde a liberdade religiosa é severamente violada. Destes, cerca de 220 milhões residem em nações onde estão diretamente expostos a perseguição ativa, enfrentando riscos concretos de violência física, prisão arbitrária ou morte em razão de sua fé. Os cristãos constituem o grupo religioso mais numeroso a sofrer restrições, embora o documento enfatize que todas as tradições de fé são afetadas pelo fenômeno.
A Fundação ACN lançou durante a apresentação do relatório uma petição global intitulada Proteja o Direito de Crer, que ficará aberta para assinaturas até novembro de 2026. O documento será formalmente apresentado à Organização das Nações Unidas, União Europeia, representantes de governos democráticos e à comunidade diplomática internacional, solicitando a adoção de leis que defendam efetivamente o direito à liberdade religiosa em todos os países.
Comunidades religiosas mantêm papel humanitário
Apesar do cenário preocupante, o relatório ressalta que as comunidades religiosas continuam desempenhando papel vital na promoção da paz, do diálogo inter-religioso e da dignidade humana. Organizações ligadas a diferentes tradições de fé lideram frequentemente respostas humanitárias em zonas de conflito, defendem direitos humanos perante governos hostis e apoiam populações deslocadas por violência ou perseguição. Em regiões como Cabo Delgado, em Moçambique, a Igreja tornou-se pilar de apoio comunitário em meio à violência jihadista.
O cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, discursou durante o lançamento do relatório em Roma e enfatizou que a liberdade religiosa não constitui mero direito legal ou privilégio concedido por governos, mas uma condição fundamental que torna possível a reconciliação autêntica entre povos e nações. A coordenadora editorial do documento, Marta Petrosillo, classificou o estudo como um apelo para que o mundo desperte e um testemunho para dar voz àqueles que são silenciados.