O clima de pré-campanha para as eleições presidenciais de 2026 aqueceu abruptamente nas últimas horas com uma troca de galhardetes de alto nível entre dois dos principais potenciais candidatos. André Ventura, líder do Chega, não poupou críticas às recentes declarações do Almirante Henrique Gouveia e Melo, classificando-as como “irresponsáveis” e perigosas para a estabilidade democrática nacional. O ponto de discórdia central gira em torno de uma sugestão vaga do militar sobre a necessidade de alterar as “regras do jogo” político e constitucional, algo que Ventura interpretou como um ataque ao sistema parlamentar vigente. Aproveitando o momento de confronto, o deputado de extrema-direita trouxe novamente para a ribalta um dos seus temas de bandeira: a exigência de um referendo nacional sobre a eutanásia, demarcando uma linha clara entre a sua visão e a do seu provável adversário.
A polémica instalou-se quando Gouveia e Melo, em intervenções públicas recentes, sugeriu que o sistema político atual necessita de reformas profundas, aludindo a uma revisão constitucional que poderia alterar o equilíbrio de poderes. Para Ventura, essa postura é inadmissível vinda de um candidato que se perfila como independente, mas que, segundo ele, demonstra desconhecimento ou desapreço pelos mecanismos de controlo democrático. O líder do Chega argumenta que falar em mudar as regras constitucionais sem apresentar propostas concretas cria instabilidade e desconfiança nas instituições, algo que um Chefe de Estado deve evitar a todo custo.
Este embate não é apenas retórico, ele revela duas visões antagónicas sobre o papel do Presidente da República. Enquanto Gouveia e Melo parece apostar numa magistratura de influência que pode tocar nos alicerces do regime para “limpar” a política, Ventura posiciona-se como o defensor da voz direta do povo através de referendos, mas paradoxalmente acusa o oponente de querer subverter a ordem constitucional sem legitimidade clara. A tensão entre o “político de carreira” e o “militar fora do sistema” promete ser a tónica dos próximos meses, com a Constituição da República Portuguesa a servir de campo de batalha.
Além da questão constitucional, a eutanásia surge como o segundo grande fronte desta guerra política. Ventura aproveitou a visibilidade das críticas a Gouveia e Melo para reiterar que, caso seja eleito para o Palácio de Belém, não aceitará a lei da morte medicamente assistida sem que os portugueses sejam consultados. A insistência no referendo é uma estratégia para mobilizar o seu eleitorado conservador e, simultaneamente, expor o que considera ser a passividade de outros candidatos, incluindo o próprio Almirante, sobre temas de vida e morte que dividem a sociedade.
Líder partidário rejeita propostas do Almirante
A reação de André Ventura às palavras de Gouveia e Melo foi imediata e calculada para desgastar a imagem de “estadista ponderado” que o Almirante tenta construir. Ao classificar a sugestão de revisão constitucional como “irresponsável”, Ventura tenta colar ao militar a imagem de alguém impreparado para as complexidades da política institucional. Segundo o líder do Chega, a Constituição não é um brinquedo que se altera conforme as conveniências ou descontentamentos momentâneos com os partidos, mas sim a lei fundamental que garante as liberdades de todos os cidadãos.
Ventura sublinhou que qualquer alteração às “regras do jogo” deve passar pelo Parlamento e pelo escrutínio público, e não ser imposta por uma vontade presidencialista de pendor messiânico. A crítica visa atingir o ponto fraco de Gouveia e Melo: a falta de apoio partidário formal e a sua origem na hierarquia militar, o que, na narrativa do Chega, poderia levar a tentações autoritárias ou a um desrespeito pelas competências da Assembleia da República.
O deputado foi mais longe, desafiando Gouveia e Melo a explicitar exatamente o que pretende mudar na Constituição. Essa exigência de clareza é uma armadilha política clássica: se o Almirante detalhar as medidas, arrisca-se a alienar partes do eleitorado ou a cometer erros técnicos; se mantiver a vagueza, reforça a acusação de irresponsabilidade e populismo institucional lançada por Ventura. É um jogo de xadrez onde cada declaração é dissecada em busca de vantagens táticas.
Para os analistas políticos, este ataque frontal demonstra que o Chega identifica Gouveia e Melo como o seu principal obstáculo na corrida a Belém. Ao tentar descredibilizar as propostas do Almirante agora, Ventura procura impedir que a candidatura do militar ganhe tração e se consolide como a única alternativa viável ao sistema partidário tradicional, um espaço que o próprio Ventura reclama para si desde a fundação do seu partido.
Candidato exige consulta popular sobre morte assistida
No vácuo da discussão sobre a revisão constitucional, André Ventura reintroduziu com força o tema da eutanásia. A sua posição é clara: a legalização da morte medicamente assistida em Portugal foi um processo que, segundo ele, ignorou a vontade profunda da população. Ao voltar a pedir o referendo, Ventura não está apenas a falar de saúde ou ética, mas a usar este tema como uma ferramenta de distinção política contra Gouveia e Melo e outros candidatos de esquerda ou centro.
A estratégia passa por afirmar que um Presidente da República tem o dever moral de travar leis fraturantes que não foram sufragadas diretamente pelo povo. Ventura acusa o Parlamento de ter aprovado a eutanásia “pela porta das traseiras”, através de maiorias conjunturais de esquerda, e promete que a sua presidência seria marcada pelo uso ativo do poder de pedir a fiscalização da constitucionalidade e, sobretudo, de pressionar politicamente pela realização de referendos.
Ao contrapor a sua proposta de referendo à “revisão constitucional vaga” de Gouveia e Melo, Ventura tenta passar a mensagem de que a sua proposta é democrática e direta, enquanto a do Almirante é elitista e perigosa. Ele questiona: por que razão Gouveia e Melo quer mudar a Constituição mas não se pronuncia com a mesma veemência sobre dar a voz ao povo numa questão de vida ou morte? Esta retórica visa colocar o Almirante numa posição defensiva, obrigando-o a tomar partido num tema que divide o eleitorado transversal que ele tenta captar.
A questão da eutanásia, embora já legislada, continua a ter barreiras na sua implementação prática e regulamentação. Ventura sabe que o tema ainda fervilha na sociedade portuguesa, especialmente entre os eleitores mais velhos e católicos, e usa isso como combustível para manter a sua base mobilizada. O referendo é, assim, tanto um fim em si mesmo quanto uma arma de arremesso contra a “irresponsabilidade” que ele atribui aos seus rivais políticos.
Debate sobre regras constitucionais aquece corrida
A menção às “regras do jogo” por Henrique Gouveia e Melo abriu uma caixa de Pandora que André Ventura não hesitou em explorar. A Constituição de 1976 tem sido o pilar da democracia portuguesa, e qualquer sugestão de alteração estrutural fora dos canais habituais gera apreensão. Ventura posicionou-se, curiosamente, como o guardião da estabilidade institucional neste caso específico, alertando que aventuras revisionistas sem consenso amplo podem levar o país a um impasse perigoso.
O líder do Chega argumenta que os problemas de Portugal não residem na Constituição em si, mas na corrupção e na incapacidade da classe política em resolver os problemas reais das pessoas. Ao focar a discussão na “irresponsabilidade” da sugestão de Gouveia e Melo, Ventura tenta desviar o debate de reformas estruturais teóricas para o terreno do combate à corrupção e da segurança, onde se sente mais confortável e onde a sua mensagem populista tem maior ressonância.
Este episódio marca uma antecipação significativa dos debates presidenciais. Normalmente, temas densos como a revisão constitucional são tratados com pinças, mas a entrada de perfis disruptivos na corrida, como o de um ex-militar mediático e de um líder partidário radical, está a mudar o tom da discussão. A troca de acusações sugere que a próxima campanha será focada não apenas em propostas, mas na capacidade de cada candidato de garantir a ordem e o respeito pelas instituições, ainda que ambos, à sua maneira, proponham ruturas com o status quo.
A sociedade civil observa com atenção. As sondagens indicam que existe um desejo de mudança, mas a forma como essa mudança deve ocorrer divide os portugueses. Ventura aposta na polarização e no referendo como instrumentos de legitimação; Gouveia e Melo parece testar as águas para uma abordagem mais sistémica. O choque entre estas duas visões definirá, em grande parte, a agenda política dos próximos dois anos até ao ato eleitoral.
Tensão pré-eleitoral define estratégias futuras
O confronto direto entre André Ventura e Gouveia e Melo sobre a revisão constitucional e a eutanásia é apenas o primeiro ato de uma longa batalha. Para Ventura, manter a pressão sobre o Almirante é essencial para evitar que este ocupe todo o espaço do voto de protesto. Ao rotular as ideias do rival como “irresponsáveis”, o líder do Chega tenta traçar uma linha no chão: ele é o político profissional que conhece o sistema por dentro e quer mudá-lo com o povo; o outro é um “amador” que pode quebrar o sistema por imperícia.
Do lado de Gouveia e Melo, o silêncio estratégico ou a resposta medida serão cruciais. Se entrar no jogo de “bate-boca” com Ventura, arrisca-se a perder a aura de reserva e autoridade militar que o torna popular. Se ignorar, pode deixar que a narrativa de “irresponsabilidade” se cole à sua imagem. A insistência de Ventura no referendo à eutanásia obriga todos os candidatos a saírem da zona de conforto e a definirem-se sobre temas de valores, algo que costuma ser evitado em pré-campanhas longas.
A política portuguesa entra assim numa fase de clarificação. As máscaras começam a cair e as verdadeiras intenções dos candidatos relativamente à Lei Fundamental e aos grandes temas fraturantes tornam-se públicas. Para o eleitor, este escrutínio antecipado é positivo, pois permite avaliar não apenas a popularidade, mas a consistência das ideias de quem aspira ao mais alto cargo da nação.
Resta saber se esta estratégia de ataque constante de Ventura renderá frutos ou se acabará por vitimizar Gouveia e Melo, fortalecendo-o. O certo é que a eutanásia e a Constituição deixaram de ser apenas tópicos jurídicos para se tornarem as armas principais de um duelo político que promete ser feroz até ao dia da eleição em 2026.
