A manhã desta terça-feira, 2 de dezembro de 2025, começou agitada nos bastidores da segurança cibernética nacional com a deflagração da Operação Intolerans pela Polícia Federal. Agentes saíram às ruas para cumprir mandados de busca e apreensão contra suspeitos de orquestrar ataques coordenados aos sites institucionais de deputados federais. O foco da investigação recai sobre um grupo criminoso que, em junho de 2024, mirou especificamente parlamentares que manifestaram apoio aberto ao controverso Projeto de Lei 1904/24, popularmente conhecido como “PL Antiaborto”. A ação de hoje, que conta com cooperação internacional, busca desarticular a célula responsável por tentar silenciar ou intimidar representantes do Legislativo através da força bruta digital.
Investigação contra invasores cibernéticos
A ofensiva da Polícia Federal ocorre simultaneamente nas cidades de São Paulo e Curitiba, dois polos tecnológicos que frequentemente figuram em investigações de crimes digitais. Segundo informações divulgadas pela corporação, os mandados visam apreender computadores, dispositivos de armazenamento e celulares que possam conter os registros técnicos dos ataques, conhecidos como logs, além de conversas que comprovem a autoria e a coordenação do grupo. A Operação Intolerans não é apenas uma resposta policial, mas um recado institucional de que o ativismo digital, quando cruza a linha da legalidade para o crime cibernético, não ficará impune, independentemente da motivação ideológica por trás dos atos.
Os ataques investigados foram classificados tecnicamente como DDoS (Negação de Serviço Distribuída). Nessa modalidade, os criminosos utilizam uma rede de computadores infectados — chamada de botnet — para enviar uma quantidade massiva de acessos simultâneos a um site específico, sobrecarregando o servidor até que ele saia do ar. Em junho do ano passado, no auge das discussões sobre o PL 1904/24, diversos portais de deputados de direita e conservadores ficaram indisponíveis, exibindo mensagens de erro ou lentidão extrema. A PF identificou que essa instabilidade não foi acidental, mas fruto de uma ação deliberada para prejudicar a comunicação institucional e a atuação legislativa desses políticos em um momento crucial do debate público.
Além do DDoS, houve registros de defacement (pichação digital) em alguns casos, onde a página inicial do site é alterada para exibir mensagens de protesto ou imagens provocativas. Parlamentares como Eduardo Bolsonaro (PL-SP), Bia Kicis (PL-DF) e Alexandre Ramagem (PL-RJ) estiveram entre os alvos preferenciais na época. A escolha desses nomes não foi aleatória; eles eram os principais fiadores do projeto que equiparava o aborto após 22 semanas ao crime de homicídio simples, uma proposta que gerou comoção nacional e protestos massivos nas ruas e nas redes sociais. A PF trabalha com a hipótese de que os hackers agiram como uma espécie de “braço armado digital” dos opositores ao projeto, utilizando táticas de guerrilha virtual para impor prejuízos políticos e técnicos.
A complexidade da Operação Intolerans reside na natureza sem fronteiras do crime cibernético. Para chegar aos endereços físicos em São Paulo e Curitiba, os peritos da PF tiveram que rastrear IPs (identidades digitais) que muitas vezes são mascarados por serviços de VPN ou servidores hospedados em outros países. O apoio de parceiros estrangeiros através de cooperação jurídica internacional foi fundamental para quebrar o sigilo desses dados e chegar à identificação real dos suspeitos. Essa colaboração evidencia que os hackers podem até tentar se esconder atrás de camadas de criptografia global, mas as ferramentas de investigação estatais estão cada vez mais integradas e eficazes no rastreamento de delitos transnacionais.
Ofensiva a sites de parlamentares
O contexto político que motivou os ataques remonta a um dos períodos mais tensos da Câmara dos Deputados em 2024. O PL 1904/24, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e apoiado pela bancada evangélica, propunha alterações drásticas no Código Penal, aumentando as penas para mulheres que realizassem aborto legal em casos de estupro, se o procedimento ocorresse após a 22ª semana de gestação. A proposta, apelidada pejorativamente de “PL do Estuprador” por seus críticos, colocou em lados opostos defensores dos direitos reprodutivos e grupos pró-vida, gerando um clima de guerra cultural que transbordou para o ambiente digital.
Foi nesse cenário de polarização extrema que os ataques cibernéticos ocorreram. Para os investigadores, a motivação política é um agravante, pois atenta contra o livre exercício do mandato parlamentar. Derrubar o site de um deputado não é apenas um vandalismo virtual; é uma forma de censura técnica que impede o eleitor de acessar informações, projetos e canais de contato com seu representante. A democracia pressupõe o embate de ideias, não a sabotagem de infraestruturas de comunicação. Ao mirar os apoiadores do PL Antiaborto, os hackers tentaram intervir no processo legislativo através da força, algo que a Constituição e o Marco Civil da Internet tipificam como condutas criminosas passíveis de reclusão.
A reação dos deputados atacados na época foi imediata. Bia Kicis classificou a ação como “criminosa e intolerante”, enquanto Eduardo Bolsonaro utilizou suas redes sociais alternativas para denunciar a tentativa de silenciamento. A pressão gerada pelos ataques, somada à mobilização popular nas ruas, contribuiu para que o presidente da Câmara, Arthur Lira, decidisse adiar a votação e criar uma comissão representativa para discutir o tema com mais profundidade, engavetando temporariamente o projeto. A Operação Intolerans, portanto, revisita esse capítulo para garantir que, embora o projeto tenha sido politicamente derrotado naquele momento, os métodos ilegais usados para combatê-lo não sejam normalizados como ferramenta de pressão política.
A investigação também busca esclarecer se os suspeitos agiram de forma autônoma — como “lobos solitários” ou coletivos hacktivistas descentralizados — ou se houve algum tipo de financiamento ou encomenda por parte de grupos de interesse organizados. A apreensão dos equipamentos eletrônicos será crucial para mapear a cadeia de comando, se houver, e identificar se há conexões com partidos políticos, ONGs ou outras entidades que poderiam ter se beneficiado da instabilidade gerada. Em crimes dessa natureza, seguir o rastro do dinheiro (ou das criptomoedas) é frequentemente o caminho para chegar aos mandantes intelectuais.
Combate ao crime virtual político
O Brasil tem visto uma escalada preocupante na utilização de táticas de ciberguerra no ambiente político. Desde o vazamento massivo de dados de autoridades na “Vaza Jato” até a invasão do sistema do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em anos anteriores, a segurança digital das instituições democráticas está sob constante teste. A Operação Intolerans se soma a outros esforços recentes da PF, como a Operação Deepwater, que combateu o vazamento de dados de milhões de brasileiros, mostrando que a corporação criou uma expertise robusta para lidar com delitos de alta tecnologia.
Para os deputados federais, o episódio serve como um alerta sobre a vulnerabilidade de seus sistemas. Muitos sites parlamentares são construídos com plataformas de segurança básica, tornando-se alvos fáceis para ataques de negação de serviço que exigem pouco conhecimento técnico avançado, mas geram grande impacto midiático. O Congresso Nacional tem discutido, inclusive, projetos de lei que visam aumentar a proteção de dados públicos e criminalizar com mais rigor o “defacement” e a invasão de dispositivos de autoridades, reconhecendo que a guerra híbrida já é uma realidade no parlamento brasileiro.
A responsabilização dos autores envia uma mensagem pedagógica importante: a internet não é terra sem lei. Hacktivismo — o uso de técnicas hacker para promover causas políticas — pode ser visto por alguns como uma forma de desobediência civil, mas para o Código Penal brasileiro, invadir dispositivos e interromper serviços telemáticos são crimes tipificados na Lei Carolina Dieckmann e na Lei de Crimes Cibernéticos. As penas podem variar de multa a prisão, dependendo da gravidade dos danos e da invasão de privacidade. No caso de ataques contra autoridades públicas, as sanções tendem a ser agravadas pela ameaça à segurança nacional e à ordem democrática.
A Operação Intolerans também joga luz sobre a necessidade de maior investimento em cibersegurança por parte do setor público. Enquanto hackers aprimoram suas técnicas utilizando inteligência artificial e redes de bots globais, a defesa digital do Estado muitas vezes caminha a passos lentos. Proteger a integridade digital dos mandatos é proteger a própria soberania do voto popular. Se um grupo, seja de esquerda ou de direita, consegue derrubar canais oficiais de comunicação sempre que discorda de um projeto de lei, o processo legislativo torna-se refém de quem detém o maior poder de fogo cibernético, e não de quem tem a maioria dos votos.
Ação policial contra hacktivismo
À medida que os peritos da Polícia Federal começarem a analisar os terabytes de dados apreendidos nos endereços em São Paulo e Curitiba, novos desdobramentos são esperados. É possível que a operação revele uma rede maior de crimes cibernéticos, envolvendo não apenas os ataques ao PL Antiaborto, mas outras ações de sabotagem digital contra alvos públicos e privados. A prática de “aluguel” de botnets para ataques DDoS é um mercado lucrativo na dark web, e os suspeitos presos hoje podem ser peças de uma engrenagem que presta serviços para diversos clientes mal-intencionados.
A sociedade brasileira acompanha com atenção o desfecho dessas investigações. Em um país polarizado, onde o debate político frequentemente descamba para a agressão, estabelecer limites claros no ambiente virtual é essencial para a manutenção da civilidade. O apoio ou a rejeição a um projeto de lei como o do aborto deve ser manifestado através do voto, da manifestação pacífica e do debate de ideias, jamais através da supressão violenta — física ou digital — da voz do oponente. A Operação Intolerans, com seu nome sugestivo, reforça que a tolerância democrática deve prevalecer, inclusive, e principalmente, nos bits e bytes da internet.
Conclui-se que o dia 2 de dezembro de 2025 marca um ponto de inflexão na resposta estatal ao ciberativismo radical. A Polícia Federal demonstra capacidade técnica e vontade política para perseguir quem tenta manipular o debate público através do caos digital. Resta agora aguardar a conclusão do inquérito para saber quem estava por trás dos teclados que tentaram calar o parlamento e se a justiça será capaz de alcançar todos os tentáculos dessa organização.
