Em uma decisão histórica que aprofunda a crise entre os Poderes, a Câmara dos Deputados decidiu nesta quinta,feira (11) manter o mandato da deputada federal Carla Zambelli (PL,SP). O plenário rejeitou o parecer que recomendava a cassação da parlamentar, condenada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a mais de 15 anos de prisão e atualmente detida na Itália aguardando extradição. Eram necessários 257 votos favoráveis para decretar a perda do cargo (maioria absoluta), mas o placar final registrou apenas 227 votos pela cassação, 170 contrários e 10 abstenções. Com isso, a representação será arquivada, e Zambelli continua, tecnicamente, como deputada federal, mesmo estando fisicamente impossibilitada de exercer a função.
A votação contraria diretamente a determinação da Primeira Turma do STF, que já havia decretado a perda do mandato como efeito automático da condenação criminal transitada em julgado. No entanto, a Mesa Diretora da Câmara, sob a presidência de Hugo Motta (Republicanos,PB), entendeu que a palavra final sobre o mandato de um parlamentar cabe ao Legislativo, submetendo o caso ao crivo dos pares. A vitória de Zambelli foi construída com forte apoio da bancada do PL e de parte do Centrão, que votou para “salvar” a colega ou se absteve, esvaziando o quórum necessário para a condenação política.
O resultado gera uma anomalia jurídica e administrativa: a Câmara passa a ter uma integrante que cumpre pena em regime fechado no exterior. A defesa da deputada, que participou da sessão remotamente ou por meio de advogados, argumentou que não houve amplo direito de defesa no processo do STF e que a condenação por hackeamento do sistema do CNJ baseou,se apenas na palavra do hacker Walter Delgatti. O argumento de perseguição política colou entre os conservadores, superando a gravidade dos crimes apontados pela Justiça.
Placar Insuficiente livra deputada
O Placar Insuficiente foi o fator determinante para a sobrevivência política de Zambelli. Pela Constituição, para cassar um mandato, não basta ter a maioria dos presentes; é preciso a maioria absoluta dos 513 deputados. Os 227 votos obtidos pela cassação, embora superiores aos 170 contrários, não atingiram a “linha de corte” mágica de 257. Isso significa que a abstenção e a ausência de deputados funcionaram, na prática, como votos a favor da ré.
Neste cenário de Placar Insuficiente, a articulação do Partido Liberal (PL) foi decisiva. A legenda fechou questão contra a cassação, argumentando que o STF estaria interferindo indevidamente nas prerrogativas do Legislativo. Deputados bolsonaristas usaram a tribuna para defender que Zambelli é vítima de “lawfare” (uso da lei para perseguição política) e que cassá,la seria chancelar os supostos abusos do ministro Alexandre de Moraes. A estratégia funcionou para manter a coesão da base conservadora.
Contudo, o Placar Insuficiente expõe a divisão da Casa. A base governista votou maciçamente pela perda do mandato, com discursos duros sobre a incompatibilidade ética de manter no cargo alguém condenado por atentar contra a fé pública e as instituições. A deputada Maria do Rosário (PT,RS) afirmou que a Câmara não deveria atuar como revisora de penas criminais, mas o apelo não foi suficiente para convencer o “baixo clero” do Centrão a entregar a cabeça de Zambelli.
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Afronta ao Judiciário e crise institucional
A decisão representa uma clara Afronta ao Judiciário. O STF condenou Zambelli por crimes graves: invasão de dispositivo informático (caso CNJ) e porte ilegal de arma (episódio da perseguição em São Paulo). Ao ignorar a ordem de perda de mandato, a Câmara cria um precedente onde a condenação criminal não gera efeitos políticos imediatos, desafiando a autoridade da Corte Suprema. Juristas apontam que essa postura pode levar a um novo embate, com o STF questionando a constitucionalidade da interpretação dada pela Mesa Diretora.
Essa Afronta ao Judiciário ocorre em um momento de tensão elevada. A Justiça italiana acaba de enviar questionamentos ao ministro Alexandre de Moraes sobre o sistema prisional brasileiro, parte do processo de extradição da deputada. Enquanto o STF trabalha para trazê,la de volta para cumprir pena na Papuda, a Câmara sinaliza que ela ainda é “Excelência”. O descompasso entre a realidade jurídica (condenada e presa) e a realidade política (absolvida pelo plenário) é total.
Além disso, a Afronta ao Judiciário pode ter reflexos em outros casos, como o dos deputados Alexandre Ramagem (PL,RJ) e Eduardo Bolsonaro (PL,SP), que também estão na mira de processos de cassação. A “salvação” de Zambelli indica que o espírito de corpo no Congresso está fortalecido para blindar parlamentares contra decisões judiciais, o que promete esquentar ainda mais a relação entre a Praça dos Três Poderes em 2026.
Situação Inusitada: Deputada presa e com mandato
A manutenção do mandato cria uma Situação Inusitada e sem paralelos na história recente. Carla Zambelli está detida na Itália desde julho de 2025, após fugir do Brasil com o trânsito em julgado de sua condenação. Como ela poderá exercer o mandato estando presa em outro continente? O relator na CCJ, Claudio Cajado (PP,BA), havia alertado para essa “incompatibilidade fática absoluta”, questionando como alguém em regime fechado poderia comparecer ao plenário e comissões.
Nesta Situação Inusitada, surgem dúvidas administrativas. Zambelli receberá salário? Poderá apresentar projetos remotamente? Terá verba de gabinete? O Regimento Interno prevê o desconto de salário por faltas não justificadas, e a prisão por condenação criminal definitiva geralmente levaria à extinção do mandato. A decisão política do plenário colide com a realidade prática, transformando a Câmara em um local onde a presença física parece ser opcional, mesmo para condenados foragidos.
Por fim, a Situação Inusitada alimenta o descrédito da população no sistema político. A imagem de uma deputada foragida, presa no exterior, mas protegida por seus colegas em Brasília, reforça a narrativa de impunidade. O presidente da Câmara, Hugo Motta, terá agora que administrar o desgaste de manter nos quadros da Casa uma parlamentar que não pode pisar no Brasil sem ser presa imediatamente pela Polícia Federal.
Escudo Corporativista em ação
O episódio é o exemplo máximo do Escudo Corporativista que protege a classe política. A votação ocorreu na mesma semana em que Glauber Braga (PSOL,RJ) foi suspenso por seis meses em vez de cassado, e no mesmo dia em que o mandato de Carla Zambelli foi preservado. Há uma percepção de “acordão” suprapartidário: a esquerda salva os seus (Glauber) e a direita salva os seus (Zambelli), com o Centrão operando como fiador de ambos os lados para manter a “paz interna”.
Esse Escudo Corporativista ignora as evidências técnicas. No caso Zambelli, a Polícia Federal e o STF reuniram provas robustas, incluindo a confissão do hacker Walter Delgatti de que agiu a mando dela para inserir um mandado falso de prisão contra Moraes no sistema do CNJ. Mesmo diante da gravidade de atentar contra a fé pública do Judiciário, a solidariedade entre os deputados falou mais alto do que o rigor ético.
Portanto, o Escudo Corporativista envia uma mensagem perigosa: o mandato parlamentar tornou,se um salvo,conduto quase inquebrável. Se nem a prisão, nem a condenação pelo STF, nem a fuga do país são suficientes para cassar um deputado, os limites éticos do Congresso foram redefinidos para um patamar de tolerância inédito.
