A pesquisa, divulgada na prestigiada revista Nature, alerta que a “explosão” no número de satélites em órbita baixa da Terra vai comprometer drasticamente a capacidade dos telescópios espaciais de capturar imagens limpas do cosmos. O cientista Alejandro Borlaff, do Centro de Pesquisa Ames da NASA, liderou a análise que concluiu que, se os planos atuais de lançamento de megaconstelações se concretizarem, a ciência espacial como conhecemos pode estar com os dias contados.
Proliferação orbital desenfreada
O termo “explosão” não é exagero. O estudo aponta que o número de satélites ativos pode saltar de cerca de 15 mil hoje para impressionantes 560 mil até a década de 2040. Esse aumento exponencial, impulsionado principalmente por empresas privadas como a SpaceX (Starlink) e concorrentes chinesas, cria um congestionamento sem precedentes. Diferente do lixo espacial, que ameaça colisões, esses satélites operacionais funcionam como espelhos gigantes, refletindo a luz solar diretamente para as lentes sensíveis dos telescópios. O resultado são riscos luminosos e “fantasmas” nas imagens que, muitas vezes, cobrem exatamente o objeto de estudo, como uma galáxia distante ou um asteroide perigoso.
A pesquisa simulou o impacto dessa frota massiva em instrumentos vitais. O Telescópio Espacial Hubble, um ícone da ciência moderna que orbita a cerca de 540 km de altitude, terá aproximadamente 40% de suas exposições arruinadas por trilhas de satélites na próxima década. Isso significa que quase metade do tempo de observação desse instrumento bilionário será jogado no lixo, desperdiçando recursos e atrasando descobertas. O problema é que os satélites estão sendo lançados em órbitas muito próximas ou até acima desses observatórios, tornando impossível “desviar o olhar” das lentes.
Poluição luminosa espacial
A situação é ainda mais crítica para os telescópios de campo amplo, projetados para varrer grandes áreas do céu. O estudo destaca o caso do telescópio SPHEREx, da NASA (lançado em 2025), e da futura missão europeia ARRAKIHS. Para esses equipamentos, a previsão é catastrófica: até 96% das imagens capturadas poderão conter interferências luminosas significativas. Essa “poluição luminosa espacial” gera um ruído de fundo que diminui o contraste das fotos, impedindo a detecção de objetos com brilho fraco. Em termos práticos, estamos cegando nossos melhores “olhos” justamente no momento em que buscamos respostas sobre a matéria escura e a energia escura.
Alejandro Borlaff explicou que o problema vai além das listras brancas visíveis nas fotos. Existe um efeito sutil de brilho difuso que “lava” a imagem, reduzindo a sensibilidade dos instrumentos. Mesmo softwares avançados de correção de imagem, que hoje conseguem limpar algumas interferências, não darão conta do volume massivo de dados corrompidos previstos para 2030. A astronomia, que sempre fugiu das luzes das cidades para o topo das montanhas e depois para o espaço, agora descobre que não há mais para onde fugir: a luz artificial nos perseguiu até a órbita.
Bloqueio da visão cósmica
O alerta da NASA levanta um debate urgente sobre a regulação do espaço. Atualmente, não existem leis internacionais rígidas que limitem o brilho ou o número de satélites que uma empresa pode lançar. O estudo sugere soluções drásticas, como obrigar as operadoras a lançarem seus satélites em órbitas muito mais baixas do que os telescópios, ou desenvolver revestimentos ultra-escuros para as naves. No entanto, essas medidas esbarram em custos e na física orbital. Colocar satélites muito baixos exige mais combustível para mantê-los em órbita e pode, ironicamente, prejudicar a camada de ozônio devido à reentrada frequente de materiais na atmosfera.
O impacto também atinge a segurança planetária. Telescópios que monitoram asteroides em rota de colisão com a Terra dependem de céus limpos para detectar ameaças com antecedência. Com o “céu engarrafado”, o tempo de detecção pode ser reduzido, aumentando o risco de sermos surpreendidos por uma rocha espacial. A China, que planeja seu próprio telescópio espacial, o Xuntian, também foi citada no relatório como uma das futuras vítimas desse cenário caótico, provando que o problema é global e não escolhe bandeira.
Saturação da órbita baixa
Por fim, a “saturação da órbita baixa” coloca em xeque o modelo de desenvolvimento tecnológico atual. A conectividade global prometida pela internet via satélite traz benefícios inegáveis para áreas remotas, mas o custo científico está se revelando muito mais alto do que o previsto. O estudo da Nature é um ultimato: sem um acordo internacional imediato para o gerenciamento do tráfego e da luminosidade espacial, a era de ouro da astronomia visual pode estar chegando ao fim, trocada por um céu noturno que pisca e brilha artificialmente.
Portanto, a sociedade e os governantes precisam decidir qual é a prioridade. A coexistência entre o progresso das telecomunicações e a exploração científica exige concessões que, até agora, as Big Techs não mostraram disposição para fazer voluntariamente. O céu, que sempre foi considerado um patrimônio da humanidade, está sendo privatizado e poluído em uma velocidade que a legislação não consegue acompanhar.
