Portaria 631: Itamaraty restringe acesso e gera alerta

Ministério das Relações Exteriores publica norma que dificulta consulta a arquivos diplomáticos, historiadores apontam violação da Lei de Acesso à Informação e risco de apagão memorial.

Vista aérea do Palácio Itamaraty em Brasília, sede do Ministério das Relações Exteriores, com seus arcos e espelho d'água.
Sede do Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) em Brasília, foco da polêmica sobre a nova Portaria 631 que restringe acesso a arquivos.

A publicação recente da nova norma administrativa pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) pegou a comunidade acadêmica e a sociedade civil de surpresa, instaurando um clima de apreensão quanto ao futuro da transparência no Brasil. A medida, que altera os critérios para classificação e acesso a documentos do arquivo diplomático, introduz conceitos vagos que podem servir como justificativa para o sigilo excessivo. Pesquisadores e entidades de defesa da história alertam que o texto pode representar um retrocesso de décadas na gestão da memória nacional.

Detalhes da Norma Diplomática

O texto oficial estabelece novas salvaguardas para a liberação de documentos custodiados pelo Itamaraty, inserindo a possibilidade de restrição baseada em “danos tangíveis ou intangíveis” ao Estado ou a terceiros. Essa terminologia é o ponto central da discórdia, pois a subjetividade da palavra “intangível” concede ao gestor público um poder discricionário quase ilimitado para negar pedidos de vista. Diferente de critérios objetivos, como riscos à segurança nacional ou fronteiras, a nova definição permite que interpretações políticas momentâneas bloqueiem o acesso a dados de interesse público.

Além da terminologia aberta, a regulação impõe barreiras burocráticas adicionais para o credenciamento de pesquisadores, exigindo justificativas detalhadas que, na prática, funcionam como um filtro prévio de intenções. Especialistas em arquivologia apontam que essa prática fere o princípio da publicidade ativa, previsto na Constituição Federal. Ao inverter a lógica de que “o sigilo é a exceção”, o governo transforma o arquivo público em um cofre fechado, onde a chave fica sob a guarda de interesses administrativos voláteis.

Riscos do Decreto Ministerial

As consequências dessa alteração normativa são imediatas e profundas para a produção do conhecimento histórico no país. Ao dificultar o acesso a telegramas, ofícios e memorandos da diplomacia brasileira, a medida inviabiliza teses, livros e reportagens investigativas que dependem dessas fontes primárias. A história da política externa brasileira, reconhecida mundialmente por sua riqueza, corre o risco de sofrer um “apagão” em períodos sensíveis, impedindo que a sociedade compreenda as nuances de decisões passadas que ainda impactam o presente.

A crítica analisada sugere que o uso de termos genéricos para impedir consultas é uma tática conhecida para evitar embaraços políticos, mas que custa caro à democracia. Quando o Estado decide o que pode ou não ser lembrado com base em danos abstratos, ele abre precedente para o revisionismo e para a ocultação de erros estratégicos. A blindagem de documentos não protege apenas a instituição, mas também impede a responsabilização de agentes públicos, criando uma zona de conforto perigosa para a administração federal.

Reações à Regra de Acesso

Entidades de peso, como a Associação Nacional de História (ANPUH) e a Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI), reagiram prontamente com notas de repúdio, classificando a ação como uma afronta à Lei de Acesso à Informação (LAI). Para esses grupos, a norma não possui respaldo legal superior e tenta reescrever, via ato administrativo infra legal, direitos garantidos por lei federal. A mobilização busca pressionar o Congresso e o Judiciário para que a medida seja sustada antes que seus efeitos se tornem irreversíveis.

O temor é que essa “jurisprudência do sigilo” contamine outros órgãos da administração pública. Se o Itamaraty, que é uma vitrine institucional do Brasil para o mundo, adota critérios tão restritivos, outros ministérios podem se sentir encorajados a seguir o mesmo caminho. Isso criaria um efeito cascata de opacidade, onde o cidadão comum perde progressivamente a capacidade de fiscalizar o poder público, restando lhe apenas as versões oficiais dos fatos, sem a possibilidade de contraditório documental.

Futuro da Transparência no MRE

Diante desse cenário, a revogação ou revisão da medida torna se uma pauta urgente para a manutenção da saúde democrática. A sociedade aguarda um posicionamento mais claro do governo sobre os limites dessa discricionariedade, exigindo que critérios técnicos e objetivos voltem a nortear a gestão documental. A transparência não é um favor concedido pelo Estado, mas um dever inalienável, e qualquer tentativa de burocratizar esse direito deve ser combatida com rigor e vigilância constante.

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