STF suspende loterias municipais: Nunes Marques proíbe bets em cidades

Ministro atende pedido do Solidariedade e derruba leis de 55 municípios, impondo multas diárias de R$ 500 mil por descumprimento da medida.

Ministro Kassio Nunes Marques, do STF, gesticulando e falando ao microfone durante sessão no plenário do tribunal, usando toga.
O ministro Kassio Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal, autor da decisão que suspendeu leis municipais sobre loterias e apostas esportivas nesta quarta-feira (3).

O mercado de apostas esportivas e loterias no Brasil sofreu um abalo sísmico nesta quarta-feira (3), com uma decisão monocrática de grande repercussão vinda de Brasília. O ministro Kassio Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a suspensão imediata de todas as leis municipais que autorizam a criação e o funcionamento de loterias e sistemas de apostas online, as populares “bets”, em âmbito local. A medida cautelar, que atinge diretamente cerca de 55 municípios espalhados por 17 estados, visa frear o que o magistrado classificou como uma “pulverização” desordenada de normas que, segundo ele, fere a competência exclusiva da União para legislar sobre o tema.

Vetos às apostas locais

A decisão atende a uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 1.212) protocolada pelo partido Solidariedade. A legenda argumentou que prefeituras de todo o país estavam atropelando a Constituição ao criar suas próprias regras para explorar jogos de azar, uma prerrogativa que historicamente pertence ao governo federal e, mais recentemente, aos estados, mas não aos municípios. Nunes Marques acolheu a tese, destacando que a “corrida do ouro” das prefeituras para lançar suas próprias bets estava criando um cenário de insegurança jurídica e risco ao pacto federativo. Para o ministro, permitir que cada cidade tenha sua própria loteria inviabilizaria a fiscalização e o controle de um setor sensível, que envolve riscos de lavagem de dinheiro e vício em jogos.

O impacto da canetada é instantâneo e severo. A partir da publicação, qualquer edital de licitação, contrato em vigor ou operação ativa baseada nessas leis municipais deve ser paralisada. Isso significa que plataformas que já estavam operando sob licenças municipais precisam sair do ar ou bloquear o acesso, sob pena de multas pesadíssimas. A decisão não diferencia apostas esportivas de quota fixa de outras modalidades lotéricas; o “pente-fino” é geral. A lógica aplicada é a de que o município não possui competência legislativa para instituir esse tipo de serviço público, independentemente da finalidade da arrecadação, seja ela para financiar a saúde, o esporte ou a previdência local.

Bloqueio de jogos regionais

O ministro foi enfático ao estabelecer punições para garantir o cumprimento da ordem. Foi fixada uma multa diária de R$ 500 mil para os municípios e empresas que insistirem em manter as operações, e de R$ 50 mil para os prefeitos e gestores responsáveis. Esse “bloqueio de jogos regionais” coloca os administradores municipais contra a parede, obrigando-os a desmontar estruturas que, em muitos casos, eram vistas como a salvação da lavoura para os cofres públicos em tempos de crise fiscal. A Associação Nacional dos Municípios e outras entidades municipalistas devem reagir, mas, por ora, a ordem é de “stop” total.

A fundamentação jurídica de Nunes Marques resgata o entendimento do STF de 2020, que quebrou o monopólio da União sobre loterias, estendendo a competência aos estados e ao Distrito Federal. No entanto, o ministro esclareceu que essa extensão não chegou aos municípios. A interpretação de que as cidades poderiam surfar nessa onda foi considerada um “salto interpretativo” equivocado por parte das câmaras de vereadores. Ao tentar replicar o modelo estadual, os municípios teriam invadido uma seara regulatória complexa, sem ter estrutura institucional para fiscalizar a integridade dos jogos ou a saúde financeira das operadoras, gerando um risco sistêmico para o consumidor.

Interrupção de sistemas municipais

O cenário que motivou a ação era, de fato, caótico. Levantamentos anexados ao processo mostram que cidades de pequeno porte estavam lançando editais para credenciar múltiplas “bets”, muitas vezes sem critérios técnicos rigorosos de prevenção à fraude ou ao jogo patológico. A “interrupção de sistemas municipais” visa, portanto, colocar ordem na casa antes que o problema se torne incontrolável. Nunes Marques argumentou que a regulação desse mercado exige uniformidade nacional, algo impossível de atingir se cada um dos mais de 5.500 municípios brasileiros decidisse criar suas próprias regras de publicidade, meios de pagamento e cotas de premiação.

Além disso, a decisão toca em um ponto nevrálgico: a competência territorial. Muitas dessas loterias municipais operavam online, sem mecanismos eficazes de geoblocking (bloqueio geográfico), permitindo que apostadores de qualquer lugar do Brasil ou do mundo jogassem em uma plataforma teoricamente restrita a uma cidade do interior. Isso, na prática, transformava uma licença municipal em uma operação nacional disfarçada, violando a lógica federativa e competindo deslealmente com as concessões federais e estaduais que pagam outorgas muito mais altas para operar em todo o território. O ministro identificou essa “burlar de fronteiras” como um dos principais vetores de desordem no setor.

Embargo às bets das cidades

A medida provisória de Nunes Marques ainda precisará ser referendada pelo plenário do STF, em uma sessão virtual extraordinária a ser convocada. Contudo, a tendência histórica da Corte tem sido a de centralizar a regulação de temas econômicos estratégicos. O “embargo às bets das cidades” lança uma sombra de dúvida sobre os investimentos já realizados por empresas que apostaram nas licenças municipais como uma via rápida de entrada no mercado brasileiro. Advogados do setor preveem uma batalha judicial intensa, com pedidos de modulação de efeitos para proteger contratos já assinados, mas a sinalização do Supremo é clara: a farra das loterias municipais acabou.

Por fim, a decisão reacende o debate sobre o pacto federativo e a autonomia financeira dos municípios. Prefeitos argumentam que a loteria é um serviço público e, como tal, poderia ser explorado localmente para gerar receita. O STF, porém, parece inclinado a manter a chave do cofre e da regulação nas mãos da União e dos estados. Para o apostador, a mudança imediata é a redução da oferta de sites obscuros ou ultra-localizados, concentrando o mercado nas grandes operadoras que buscam a licença federal junto ao Ministério da Fazenda. O jogo no Brasil está mudando de regras, e desta vez, o apito final veio do Judiciário.

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