O Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças (ECDC), sediado em Estocolmo, oficializou nesta quinta-feira (4) um passo decisivo na proteção da saúde pública global ao enviar um documento técnico detalhado aos ministros da Saúde da União Europeia. O relatório, intitulado “Cenários para a preparação e resposta à gripe zoonótica pré-pandêmica”, estabelece um marco de alerta sobre o risco de pandemia aviária. A iniciativa surge em resposta aos surtos sem precedentes de gripe aviária de alta patogenicidade que têm devastado populações de aves selvagens e domésticas, além de cruzar a barreira de espécies para mamíferos com frequência alarmante.

Ameaça de surto global
O documento enviado pelo ECDC não é apenas um aviso burocrático, mas um manual de operações desenhado para evitar que a atual crise animal se transforme em uma ameaça de surto global entre seres humanos. Edoardo Colzani, chefe de Vírus Respiratórios do ECDC, foi enfático ao declarar que, embora o risco atual para a população geral seja considerado baixo, a disseminação generalizada do vírus entre animais representa uma “séria ameaça à saúde pública”. A agência argumenta que os sinais de alerta precoce não podem passar despercebidos, exigindo uma coordenação militar entre os estados-membros para garantir que as ações sejam oportunas e eficazes antes que o vírus ganhe capacidade de transmissão sustentada entre pessoas.
Nesse contexto, o relatório destaca a necessidade urgente de uma abordagem “One Health” (Uma Só Saúde), que reconhece a interconexão indissociável entre a saúde humana, animal e ambiental. A preocupação central reside na escala geográfica da contaminação. Somente entre junho e setembro de 2025, foram detectados 183 focos do vírus em aves selvagens e domésticas em 15 países europeus, atingindo desde as costas do Mediterrâneo até o extremo norte da Noruega. Essa onipresença do patógeno na natureza aumenta estatisticamente as chances de exposição humana acidental, criando oportunidades para que o vírus sofra mutações adaptativas perigosas.
Além disso, a vigilância deve ser estendida para além das granjas industriais. O documento orienta as autoridades nacionais a monitorarem grupos de risco ocupacional, como veterinários, abatedores e caçadores, que estão na linha de frente do contato com animais infectados. A estratégia de contenção proposta pelo ECDC visa criar um “cinturão de segurança” ao redor desses profissionais, garantindo que qualquer infecção inicial seja detectada, isolada e tratada imediatamente, impedindo que o vírus encontre um caminho para a comunidade em geral.
Perigo de transmissão viral
O perigo de transmissão viral tomou novas proporções com a confirmação de que o vírus H5N1, especificamente o clado 2.3.4.4b, está saltando com facilidade para mamíferos terrestres e marinhos. O ECDC documentou casos em raposas do Ártico, gatos domésticos e, mais preocupante, o surto contínuo em gado leiteiro nos Estados Unidos, que serve de alerta vermelho para a Europa. A adaptação do vírus a mamíferos é um passo evolutivo crítico que pode facilitar a infecção humana, visto que a biologia desses animais é mais próxima da nossa do que a das aves.
Contudo, até o momento, não houve registro de transmissão sustentada de pessoa para pessoa, o que mantém o nível de alerta na fase de “pré-pandemia”. Os casos humanos registrados em 2025, como os ocorridos no Camboja, Vietnã e Estados Unidos, foram todos ligados à exposição direta a animais doentes ou ambientes contaminados. O documento do ECDC reforça que, embora as mutações associadas à adaptação em mamíferos tenham sido identificadas esporadicamente, o vírus ainda não adquiriu as características genéticas necessárias para se espalhar pelo ar entre humanos como a gripe sazonal.
Apesar disso, a ciência opera com a prevenção do pior cenário. O ECDC instrui os laboratórios nacionais a intensificarem o sequenciamento genômico de todas as amostras positivas. O objetivo é rastrear, em tempo real, qualquer pequena alteração no código genético do vírus que indique um aumento na sua capacidade de ligação aos receptores das células humanas. Essa vigilância molecular é a principal ferramenta de inteligência biológica que a Europa possui para antecipar os movimentos do vírus e ajustar as vacinas candidatas antes que uma onda de infecções comece.
Emergência sanitária continental
Para lidar com uma potencial emergência sanitária continental, o plano do ECDC detalha ações logísticas que vão muito além da teoria. O documento recomenda explicitamente que os países garantam estoques estratégicos de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para trabalhadores rurais e profissionais de saúde. A experiência traumática da COVID-19 ensinou aos gestores europeus que a escassez de máscaras e luvas pode colapsar o sistema de resposta nas primeiras semanas de uma crise, algo que não pode se repetir com um vírus que possui uma taxa de letalidade historicamente maior que a do coronavírus.
Outra medida inovadora sugerida é o monitoramento de águas residuais, inclusive de banheiros de aeronaves e aeroportos internacionais, como uma forma de radar passivo para detectar a entrada de novas variantes no continente. Essa técnica, aprimorada nos últimos anos, permite identificar a circulação do vírus em uma comunidade antes mesmo que os pacientes cheguem aos hospitais. O ECDC enfatiza que a capacidade laboratorial deve ser expandida agora, em tempos de paz, para suportar um aumento súbito na demanda por testes PCR caso o cenário epidemiológico se deteriore.
Dessa forma, o planejamento inclui a definição clara de protocolos de isolamento. Pessoas expostas a animais infectados devem ser monitoradas ativamente por 10 a 14 dias, e qualquer sintoma respiratório deve desencadear um protocolo de teste imediato e isolamento rigoroso. O ECDC também discute a necessidade de preparar sistemas de saúde para “cenários mais sérios”, onde a infecção humana se torne frequente, exigindo leitos de isolamento dedicados para evitar a contaminação nosocomial (dentro dos hospitais).
Cenário de contágio humano
Por fim, o documento prepara as autoridades para o temido cenário de contágio humano, onde as barreiras de contenção falham. A agência europeia ressalta que, embora a maioria dos vírus de gripe aviária não infecte humanos facilmente, a circulação contínua cria uma “roleta russa” biológica. A preocupação não é apenas com a mortalidade direta, mas com o impacto sistêmico que um surto poderia causar na segurança alimentar e na economia, dado que o combate ao vírus em animais envolve o sacrifício em massa de rebanhos e aves, elevando preços e gerando desabastecimento.
O ECDC lembra que os antivirais licenciados atualmente na Europa funcionam contra as cepas circulantes do H5N1, o que é uma notícia positiva, mas a eficácia depende do início rápido do tratamento. Portanto, a educação da população e dos profissionais de saúde para reconhecer os sintomas precocemente é vital. O relatório serve como um chamado à responsabilidade para que governos não subestimem a capacidade de mutação do vírus influenza, mantendo a infraestrutura de saúde em alerta máximo mesmo enquanto a vida cotidiana segue normal.
Em conclusão, a mensagem de Estocolmo é clara: a preparação não é pânico, mas prudência. O envio deste documento marca o início de uma nova fase na gestão de riscos biológicos na União Europeia, onde a transparência e a antecipação substituem a reação tardia. Enquanto o vírus continua sua marcha pela fauna global, a Europa tenta erguer um muro de ciência e logística para proteger sua população humana, esperando o melhor, mas preparando-se, factualmente, para o pior.
