IA que revive familiares mortos viraliza na web

Startup americana permite criar avatares digitais de pessoas falecidas a partir de vídeos de três minutos. Especialistas alertam para riscos psicológicos e comparam tecnologia a episódio de Black Mirror.

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Captura de tela do aplicativo 2Wai mostrando videochamada com avatar digital de mulher idosa gerado por inteligência artificial
Aplicativo 2Wai permite criar avatares interativos de familiares falecidos a partir de vídeos de apenas três minutos

Um aplicativo de inteligência artificial capaz de recriar digitalmente familiares já falecidos viralizou nas redes sociais e reacendeu discussões sobre os limites éticos da tecnologia. O vídeo promocional da startup americana 2Wai ultrapassou 22 milhões de visualizações na plataforma X após ser divulgado pelo cofundador Calum Worthy, ator conhecido por suas participações em produções da Disney Channel.

A ferramenta promete transformar apenas três minutos de gravação em um avatar interativo capaz de simular voz, aparência e até memórias de pessoas mortas. Consequentemente, a proposta dividiu opiniões entre aqueles que enxergam potencial terapêutico e críticos que classificam a iniciativa como perturbadora e potencialmente prejudicial ao processo natural de luto.

Inteligência artificial ressuscita entes queridos digitalmente

O vídeo promocional apresenta uma mulher grávida conversando por videochamada com uma representação digital de sua mãe já falecida. Ao longo da narrativa, a avó virtual acompanha o crescimento do neto em diferentes fases da vida, desde os primeiros meses até a idade adulta. Além disso, a peça publicitária encerra com o personagem anunciando que sua avó se tornará bisavó.

A mensagem final do anúncio afirma que poucos minutos de gravação seriam suficientes para preservar essas interações no futuro indefinidamente. Worthy descreveu a plataforma como um arquivo vivo da humanidade e questionou como seria integrar pessoas mortas ao cotidiano digital das famílias. Entretanto, a reação majoritária nas redes sociais foi intensamente negativa.

O aplicativo gera os chamados HoloAvatars, que segundo a empresa se parecem e falam como o usuário, compartilhando inclusive as mesmas memórias. A versão beta está disponível para iPhone desde o verão americano, enquanto a versão para Android ainda aguarda lançamento. Ademais, a startup captou cinco milhões de dólares em financiamento inicial com apoio de empresas como British Telecom e IBM.

Tecnologia que recria mortos enfrenta críticas severas

A publicação de Worthy acumulou apenas seis mil curtidas, mas gerou milhares de respostas críticas condenando a tecnologia proposta. Um usuário classificou o aplicativo como objetivamente uma das ideias mais malignas imagináveis, comentário que recebeu mais de 210 mil curtidas. Similarmente, outros internautas utilizaram termos como demoníaco, desonesto e desumanizador para descrever a proposta.

As comparações com Black Mirror tornaram-se inevitáveis entre os comentários mais compartilhados nas redes sociais. O episódio Be Right Back, exibido na segunda temporada da série britânica, apresenta premissa notavelmente similar ao mostrar uma mulher que recria digitalmente seu namorado morto. Consequentemente, muitos usuários questionaram se ficção distópica deveria servir como manual de instruções para a indústria tecnológica.

O criador do desenho animado Gravity Falls, Alex Hirsch, classificou o aplicativo como uma das coisas mais vis que já viu em sua vida. Da mesma forma, outros nomes conhecidos da indústria do entretenimento manifestaram desconforto com a proposta comercial. Portanto, a repercussão negativa superou amplamente qualquer entusiasmo inicial com as possibilidades oferecidas pela ferramenta.

Aplicativo de avatar gera alerta de psicólogos

Especialistas em saúde mental expressaram preocupação significativa com os potenciais impactos psicológicos do uso prolongado dessa tecnologia. A psicóloga Andréza alerta que quando a tecnologia ocupa o espaço deixado pela pessoa que se foi, ela pode interromper o fluxo natural do luto e dificultar a aceitação da perda. Dessa maneira, o avatar digital funcionaria como interrupção do percurso emocional necessário para elaborar a perda.

O risco de dependência emocional figura entre as principais preocupações levantadas por profissionais da área. Segundo especialistas, a pessoa pode sentir que só consegue lidar com a dor se continuar interagindo com a representação virtual do falecido. Consequentemente, o luto se paralisa e a reconstrução interna necessária para seguir em frente fica comprometida por tempo indefinido.

Pesquisadores da Universidade de Cambridge publicaram estudo alertando que ferramentas de recriação digital de falecidos podem causar danos psicológicos graves. Os acadêmicos Tomasz Hollanek e Katarzyna Nowaczyk-Basinska descreveram casos em que usuários desenvolveram relações problemáticas com avatares de parentes mortos. Portanto, recomendaram inclusão de avisos de responsabilidade e limites de idade para utilização dessas plataformas.

Ferramenta de memória digital levanta questões jurídicas

A legislação brasileira e internacional ainda não acompanha o ritmo acelerado dessas inovações tecnológicas relacionadas à memória póstuma. Especialistas em direito digital alertam que herdeiros não possuem os direitos personalíssimos do falecido, incluindo voz, trejeitos e comportamento. Esses direitos são intransferíveis e caberia à família apenas zelar pela honra e memória do ente querido.

A questão do consentimento representa um dos maiores dilemas éticos envolvendo a recriação digital de pessoas mortas. Afinal, como garantir que o falecido aprovaria o uso de sua imagem e voz para interações que nunca ocorreram em vida? Além disso, se o avatar adotar posições opostas às que a pessoa defendia, configura-se violação grave à memória do indivíduo falecido.

O advogado especializado Pedro destaca que mesmo sem poder autorizar a recriação, familiares podem agir juridicamente se a simulação distorcer a imagem da pessoa. Dessa forma, existe possibilidade de responsabilização civil quando avatares digitais apresentam comportamentos incompatíveis com a personalidade real do falecido. Contudo, a falta de regulamentação específica dificulta a proteção efetiva dos direitos envolvidos.

Recurso de conversação com mortos não é novidade absoluta

Diversas startups já exploravam o mercado de memória digital antes da viralização do 2Wai nesta semana. A HereAfter AI, fundada em 2019, permite criar avatares de entes queridos a partir de entrevistas realizadas enquanto a pessoa ainda estava viva. Similarmente, a plataforma StoryFile produz vídeos conversacionais com tecnologia de inteligência artificial que respondem perguntas dos usuários.

O conceito de manter contato com falecidos através da tecnologia remonta a décadas de especulação ficcional e experimentação real. Entretanto, os avanços recentes em inteligência artificial generativa tornaram essas recriações significativamente mais convincentes e acessíveis. Consequentemente, o debate ético intensifica-se à medida que a fronteira entre preservação de memória e simulação de presença torna-se cada vez mais tênue.

A Amazon chegou a desenvolver em 2022 funcionalidade para sua assistente virtual Alexa que permitia imitar vozes de parentes falecidos. O projeto demonstrou o interesse de grandes corporações de tecnologia nesse segmento de mercado emocionalmente sensível. Portanto, o 2Wai representa apenas a manifestação mais recente de uma tendência tecnológica que promete continuar gerando controvérsia.

Sistema de criação de avatares divide opinião pública

Defensores da tecnologia argumentam que ferramentas de memória digital podem oferecer conforto legítimo para pessoas enlutadas em momentos de vulnerabilidade. Alguns usuários relatam experiências positivas ao interagir com representações digitais de entes queridos, especialmente quando a perda foi recente. Ademais, a possibilidade de preservar histórias familiares para gerações futuras apresenta apelo genuíno para muitas pessoas.

Por outro lado, psicoterapeutas especializados em luto alertam que substituir a ausência real por presença artificial pode perpetuar confusão emocional. Segundo o professor Nigel Mulligan da Universidade de Dublin, ressuscitar pessoas mortas como avatares tem potencial de causar mais mal do que bem. Consequentemente, podem surgir manifestações de estresse, depressão, paranoia e até psicose em casos extremos.

O psicanalista Sigmund Freud já apontava dificuldades quando existem sentimentos ambivalentes em relação à pessoa falecida. Rituais e símbolos tradicionais permitem que seres humanos se lembrem adequadamente para esquecer adequadamente e seguir em frente. Entretanto, a permanência digital indefinida de representações de mortos pode comprometer esse processo natural de elaboração psíquica.

Plataforma de imortalidade digital continua operando

Apesar das críticas massivas, o aplicativo 2Wai permanece disponível para download e a empresa continua desenvolvendo novas funcionalidades. A plataforma oferece também interações com avatares de figuras históricas como William Shakespeare, Florence Nightingale e Frida Kahlo. Dessa maneira, a startup busca diversificar seu modelo de negócios para além do nicho controverso de recriação de familiares falecidos.

O modelo de monetização prevê transição para assinatura paga após o período de teste gratuito, o que gerou críticas adicionais. Usuários questionaram a ética de criar dependência emocional vinculada a pagamentos recorrentes para manter acesso ao avatar de um ente querido. Portanto, a pergunta sobre cancelar assinatura e nunca mais conversar com seus pais mortos ganhou conotação particularmente perturbadora.

A discussão sobre limites éticos da inteligência artificial em contextos de luto e memória promete continuar gerando polêmica nos próximos anos. Enquanto a tecnologia avança rapidamente, regulamentações e diretrizes éticas permanecem significativamente atrasadas. Assim sendo, usuários e famílias precisam navegar esse território inexplorado com cautela, buscando orientação profissional quando necessário.

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